Caminhando ele vai, tão sofrido quanto um barco que não tem água por onde flutuar. Um barco à deriva que tira forças, não se sabe de onde, para se arrastar num oceano de coisas frenéticas e sem sentido. Seus fones de ouvido servem como um cobertor de criança na madrugada escura.
— A criança, quando cresce, descobre que o bicho-papão que habita debaixo do asfalto é muito mais monstruoso.
Ele passa por uma banca de revistas, relicário de um passado analógico. O jornaleiro, de olhar perdido, observa os carros, os homens e as mulheres com suas telas e fones. Os cachorros vadios, a fumaça a passar, o barulho a passar.
— O jornaleiro é o espectador melancólico de um filme sem fim, de cenas repetidas.
Caminhando ele segue, em meio a centenas de milhões de outros cidadãos pariformes. O som em seus fones de ouvido, tão particular, transfigura o caos urbano em uma espécie de sinfonia dissonante, não existe consenso nem harmonia. Um morador de rua delirante fala em direção ao ar, impuro ar. Por sinal, todos nas ruas são prisioneiros de devaneios mentais, que compartilham com as próprias sombras — público leal, público solidário. Todos nas ruas são frios como sombras.
— No interior da mente, prevalece o caos de vozes, segredos, medos, planos ansiosos.
Num outdoor, sorri uma menina de dentes tão brancos como a paz inalcançável. É uma ilha de felicidade plástica. Seu sorriso produzido vende algo que pode ser usado para varrer a solidão, ou aspirá-la, ou traduzi-la para um idioma inteligível, ou disfarçá-la com beleza falsa.
— A menina de sorriso branco tenta vender um antídoto que não existe.
Os pedestres, surdos com mil sons auriculares, andejam, sempre a um passo de serem atropelados. Os motoristas, enjaulados em suas cápsulas de metal, perambulam pelas ruas como autômatos. A cada mínima oportunidade, automáticos como robôs, desbloqueiam seus celulares.
— E, assim, o sinal vermelho é o gatilho para um disparo em direção ao absoluto nada.
Caminhando seguem todos, mas os olhares não se cruzam porque ninguém mais tem olhos. Seus corpos são porta-aviões onde as almas tentam, mas não conseguem, pousar. Na metrópole, milhões se atravessam, coexistindo sem se encontrarem. Os prédios são mausoléus de sonhos empilhados, esquecidos como revistas velhas. Lá embaixo, as calçadas são trilhas de espíritos errantes.
Uma folha seca dança no ar, ao sabor do vento. Sem destino, sem rumo. Gira, sem sentido, por sobre o asfalto caótico. Assim também fazem os indivíduos, inconclusos, vazios. Todos dançam ao sabor do acaso, e nem sempre em busca de algum sentido.
Em seus fones de ouvido, persistem melodias que embalam a cidade insone em seu ritmo insuportável. — Por essas e outras, eu quero muito ter um galinheiro. Quero com toda a força da minha alma.