segunda-feira, 6 de novembro de 2023
O espião
segunda-feira, 28 de agosto de 2023
Meu reino
Abaixo dos felinos, meu sofá se expande, igualmente belo e gigante. Vez ou outra, mando lavar ou reformar. Troco sua cor, desde que seja para azul. E por falar em azul, tenho um violão vermelhíssimo, com angelicais cordas de aço. Prefiro cordas de nylon, mas quando o vendedor perguntou aço?, respondi sim querendo dizer não.
O banheiro é moderno, mas o chuveiro funciona mal. Provavelmente porque o comprei com a voltagem errada. Respondi sim ao vendedor querendo dizer não. A geladeira está sempre repleta de cervejas. Se eu as bebesse, ela esvaziaria. Como não as bebo, permanece cheia. Na cozinha há inúmeras plantinhas. Algumas comprei na floricultura, outras nasceram por geração espontânea. Toda sexta-feira dou água a elas, mas elas nunca me dão nada. Por isso, cuidar das plantas é um exercício de altruísmo. Elas bebem água e nada acontece. As mais ingratas um dia morrem.
Quando mais jovem, eu era capaz de me curar de qualquer doença tomando o máximo de água que aguentasse. Enrolava-me com uma dezena de cobertores e concebia, dessa forma, um casulo superaquecido no interior do qual eu transpirava caoticamente. Conforme suava e urinava, eu bebia mais água e, assim, continuamente, ia fazendo, até curar-me completamente. Nunca falhou.
Todas as noites, minha última visão, antes de adormecer, é da luz fortíssima da luminária, virada para a parede do canto, e também do livro e da cara de Jesus. Ali me deito, leio e sonho com as coisas mais loucas. O lado direito da cama pertence à minha pequena, que não gosta da luminária acesa. Acato sim querendo negar não. Não sei seu nome. Só sei que tem a letra L. Por sinal, estabeleci, desde sempre, que todos os nomes de mulher deveriam ter a letra L. Sem o L, parece faltar a leveza necessária ao feminino. Parece faltar lirismo. Falta luxúria. Falta linearidade, falta lógica.
A luz lilás da luminária, o livro lúdico, o lindo Jesus. Um dia, uma menina de apenas oito anos de idade pintou um retrato perfeito de Jesus. Isso me mobilizou além da conta porque a artista tivera visões da dimensão celestial e, mediante essa experiência, desenhou a imagem do Filho de Deus, exatamente conforme ela havia visto. Creio que o retrato seja mesmo fidedigno, mas, ainda que não o fosse... poxa, é absolutamente impressionante que uma criança seja capaz de pintar um retrato tão realista.
A luminária que ofusca, o livro, a cara de Jesus. Talvez eu tenha lido dez por cento dos livros que armazeno. Alguns são clássicos da literatura, outros versam sobre Freud, outros sobre Jesus. Queria um livro que misturasse tudo isso. E também um Big Mac, de madrugada sempre tenho fome. E também uma pequena, com a letra L. E um leal leão.
O outro chuveiro é eficaz. Debaixo dele desapareço e canto. A voz anda grave e ressonante, por causa da gripe. Se fosse mais jovem, eu me embolaria em dez cobertores até suar e ficar curado.
Preciso trocar a lâmpada da luminária por uma mais branda. O livro, a cara de Jesus, vestido com vestes brancas. Em qualquer direção, ele me olha, como fazia a Monalisa. E eu me pergunto: o que é que eu tô fazendo aqui? Já nem sei. Pra que tantas roupas? Muitas encolheram, ou fui eu que engordei, nem sei.
Toda noite, os leões, a luz, o livro, Jesus. Ontem o Bruno, do Biquini, não cantou aquela canção segundo a qual a sua casa é seu reino. Sou muito ídolo do Bruno Gouveia. Ou melhor, sou fã desse cantor. Já nem sei.
Eu sei é que toda essa adrenalina não me deixa dormir.
quinta-feira, 13 de julho de 2023
Ideias para o mundo começar de novo – PARTE UM
Dores, simplesmente, emergem, não se sabe de onde.
A mobilidade enferruja. A memória falha. As esperanças arrefecem. A solidão faz companhia. E muito mais.
Em contrapartida, na maior parte dos casos, a velhice contempla seus indivíduos com uma reserva de serenidade, que vem do desapego, que aplaca a ansiedade e traz sossego. Poxa, isso é realmente bem sensacional! Mesmo assim, é inegável que a humanidade se encontra, desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada. Especialmente porque as dinâmicas do mundo, portanto, pertencem e são dominadas por aqueles que ainda não envelheceram demais.
E isso, poxa… isso não é legal — o que justifica minha mais nova e utópica proposta, que, assim exijo, deverá ser levada em conta no caso de, algum dia, o mundo precisar ser refeito, começar tudo de novo.
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Neste ponto, abandono a modéstia para anunciar que minha ideia é totalmente original e absolutamente viável. Além disso, é de facílima execução pelo Criador (que, como sabemos, tem um portfólio pra ninguém botar defeito, e ainda por cima é onipotente).
Não será preciso mexer em muita coisa na natureza do homo sapiens, não, nada disso. Em respeito à inevitável finitude da vida como a conhecemos, não ousaria reforçar a saúde universal da humanidade, nem nossas potências. Entendo que a debilitação natural do corpo e da mente, assim como a gradativa indisposição generalizada, que tem como consequência a aceitação de tudo isso, são mecanismos gentilmente programados para que nos desliguemos, aos pouquinhos, da vida terrena.
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Eis então, e finalmente, o pulo do gato para um novo planejamento da nossa espécie (lembrando que meu projeto buscou criar uma vantagem significativa para os mais idosos, sem afetar o ciclo de vida humano ou causar desequilíbrios de quaisquer ordens):
Um perfume natural unanimemente sublime; suave e ao mesmo tempo enfeitiçante, que a cada dia irá se tornando ainda mais agradável. Mas não é só isso: tal elixir funcionará também como um purificador do ar ambiente. Trará frescor, bem-estar — e até paz.
Eu explico. Na minha nova versão do ser humano, já por volta dos 35 ou, no mais tardar, aos 40 anos de idade, passa a ser perceptível o comecinho da produção, pelo organismo, de um perfume natural — que, progressivamente, anula nossos odores corporais característicos. Aqueles que a gente se habituou a detestar.
Dessa forma, aos 50 anos de idade, todos seriam dotados de uma virtude incrivelmente sedutora:
“Olha só como o fulano envelheceu: está calvo, enrugado e desgastado. E que cheiro maravilhoso tem esse fulano!”
Seria mais ou menos assim.
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Sobrarão vagas para os idosos que desejarem trabalhar. As mais requintadas lojas terão um ou dois anciãos sentadinhos, num cantinho, em um confortável sofá — climatizando a atmosfera local, suavizando o ambiente, atraindo clientes. Bares mais simplórios contratarão senhores e senhoras para ficarem ali, como bem quiserem estar, anulando o cheiro de cerveja velha e a presença de moscas.
Os governos dos países que tiverem mais dinheiro disponível prospectarão pessoas cada vez mais idosas. (Cheguei a imaginar uma corrida silenciosa disputada pelos Estados Unidos e a União Soviética, em que as potências se empoderariam quanto mais atraíssem cidadãos centenários).
E por falar em poderio, reuniões entre veteranos de guerras antigas serão como espetáculos de essências naturais, bem como encontros de ex-colegas aposentados e decanos de toda ordem, além de bailes da terceira idade, serestas e shows do Roberto Carlos (pressupondo, obviamente, que Roberto Carlos siga sendo o cantor favorito dos idosos no mundo hipotético que descrevo).
Consultórios especializados oferecerão terapias de aroma, visando ao relaxamento e à cura, em recintos onde se convive e se respira com idosos. Nas cidades mais culturais, serão promovidos festivais de imersões olfativas, reunindo protagonistas que, de tão velhinhos, mal conseguirão entender o que se passa...
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Registro e encerro aqui, por ora, meu esboço que, indubitavelmente, vai aprimorar a reescritura do mundo, no caso em que ela venha a se fazer oportuna — lembrando que coisas absurdas podem acontecer, é bom estar sempre atento.
Se o dia desse absurdo enfim chegar, sugiro, a quem puder ou souber dar encaminhamento à instância competente, que o faça, com independência, ou que busque minha consultoria na infinita grande rede onde ninguém está escondido.
É isso.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2020
A lição que deu o Jonas
Solitário, o céu deprimia-se, uma vez que acinzentado: um céu inglês em pleno outubro viçosense. O filme da minha existência parecia-me então passar inteirinho diante dos olhos. Coisa bem semelhante àquilo que sucede quando a gente morre – e morre de uma vez por todas. Dizem que é assim.
Andejando lento, meu horizonte era o prédio das Humanidades,
que ficava longe, bem longe. Acho que eu nem queria mesmo chegar ao destino,
não.
Sentia-me como na iminência de um duelo sangrento com o
professor Jonas Queiroz em seu gabinete. Isso porque o danado não me aprovara,
no semestre regular, em sua disciplina, que tratava da formação histórica
brasileira. A missão daquele dia era, pois, consumar sua prova final – aquele
exame indesejado, que fazemos nas férias, quando não há mais nem um paralelepípedo
na universidade, e que pode determinar a falência total de nossos órgãos.
Todos sabemos que quando você caminha sozinho no campus, e
vai tentar sua última cartada na prova final de uma disciplina, os cachorrinhos
vadios de Viçosa e toda a Via Láctea cochicham, no interior da sua mente, que
você é um indigno ou, como queira, um desprezível filhadaputa. Afinal, nem mesmo os
insetos merecem fazer prova final, durante as férias, no campus. Debaixo do céu
solitário e cinzento. Em pleno outubro.
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A memória errante caçava, então, desvendar as circunstâncias
que me haviam conduzido àquela situação. Nesse ponto, digo e reafirmo que eu
fora injustiçado, já que havia me preparado como um atleta para a terceira
avaliação regular do professor Jonas, depois da qual todos os filhos de Deus se
tornariam aptos a gozar suas férias. Juro que meu teste havia sido
irrepreensível! Escrevi quatro folhas das quais babava o conhecimento, frente e
também verso. Juro que eu sofrera a maior das injustiças! Isso eu juro pelo
amor dos meus dois miseráveis filhinhos! E juro nesses termos para deixar bem fiável o meu juramento.
Ainda assim, como o leitor já percebeu, Jonas Queiroz, tão
feroz, não me aprovou. Meu castigo foi a compulsória e maldita prova final.
Justamente por causa disso, naquele dia nublado eu estava
possesso de raiva quanto às alegações de um tal Gilberto Freyre. Esse autor, se
hoje não me falha a memória, falava sobre coisas belas que prevaleciam no
Brasil-colônia, como o ar da África, um ar quente e oleoso, que amolecia as
durezas germânicas, corrompendo a rigidez moral... Como bem sabemos, essa
conversa é típica de um legítimo vigarista ou, se o leitor preferir, um
legítimo cafajeste. Determinado em ser aprovado no mais curto dos prazos,
estudei a ponto de saber tudo sobre o assunto.
Ainda assim, Jonas Queiroz, tão insensível algoz, não teve
piedade. E minha pena era estar solitário em Viçosa durante aquela tarde
sombria, submetido à chance derradeira, também conhecida como prova final.
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Divagava eu sob o céu pesado enquanto seguia como um bovino
a caminho do abate. Ou como um crucificado a caminho da crucificação. O
corolário do triunfo do perverso docente sobre toda a humanidade. Refletia,
entre outras coisas, sobre a revolução técnico-científica, e até onde ela nos
levaria. Meditava sobre a burguesia, a aristocracia, o pacto colonial.
Sobre os olhos tropicais de Jaqueline.
Ruminava eu, naquele contexto, a respeito da maneira como
subsistira a colonização, a escravidão e, claro, o monopólio comercial. E a
respeito da falta de caráter de alguns estudantes, da qual se queixara Jonas
Queiroz – sempre tão atroz. A Inconfidência Mineira, a Revolta da Vacina, a
Revolta de Canudos.
Revoltado, eu me recordava dos lábios carinhosos, da voz
penetrante e da pele branquinha de Jaqueline.
Quando você anda no campus deserto, indo fazer, sozinho, uma
prova final, você pensa nos colegas que já foram premiados e estão longe, de
férias. Você procura no firmamento, por trás das nuvens, um satélite que transmita a
onisciência deles para você. Mas isso não passa de uma tolice, posso garantir.
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Desconjuntado, então, adentrei o edifício do Departamento,
na justa hora agendada pelas partes. Lá estava Jonas Queiroz, de expressão
tenaz, como uma serpente à espreita de um descuido da sua presa. Também lá
estava uma mulher que havia sido minha professora no ensino médio.
"Ah, esse garoto é peça rara. É um bom menino".
"É mesmo? Pois pergunte a ele o que faz aqui".
A ironia de Jonas Queiroz, mais seu silêncio fugaz, quase
despedaçou minhas esperanças.
Entregou-me a avaliação. Eu o mirava feito um boxeador. Ele
se esquivava, seu olhar ricocheteava pela sala. Que diabos seriam as limitações
do conceito de família patriarcal? E quanto ao padrão de privacidade de
Sevcenko? Salvo engano, esse sujeito é centroavante do Chelsea... Teria o
jogador, fora das quatro linhas, um padrão de privacidade diferente dos demais
mortais? Quais foram as pressões sofridas pelo antigo sistema colonial para a
emancipação política? Opa, essa eu sei mas...
"O tempo já foi", encerrou Jonas Queiroz, cruelmente veloz.
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Permaneci apreensivo durante alguns dias, e devo informar
que passei nessa prova final, com 75% de nota, já que respondi três das quatro
questões, com maestria, e deixei a outra em branco. Devo dizer também que
Jaqueline, que povoava meu pensamento em outubro de 2006, a ponto de tirar-me o
foco das demais coisas da vida, segue sendo muito graciosa, e hoje é uma
cantora famosa.
Por fim, devo esclarecer que não tenho filhos e, por isso
mesmo, não considerei que houvesse problema algum em jurar por eles – seres,
assim, fictícios – que eu fora vítima de um julgamento vil e impertinente do
professor Jonas, no contexto provisório em que ele me desaprovara no conjunto
das avaliações regulares de sua disciplina.
A bem da verdade, ao longo de uma conversa franca e
proveitosa que estabelecemos em seu gabinete naquela tarde da prova final,
Jonas me ensinou sobre a importância de um conceito que, segundo ele, era
comumente negligenciado, tanto por estudantes, quanto por vestibulandos ou
concurseiros: a objetividade.
Responder àquilo que está sendo perguntado – definiu ele – em
vez de encher quatro folhas com coisas que não estão sendo perguntadas.
O ensinamento pode parecer simples ou banal, mas atesto que é valioso
demais, e capaz de nos livrar de armadilhas ao longo da vida, em diversas
searas. Devo ao Jonas, portanto, parte das coisas bem sucedidas que conquistei
por aí.
Essa foi a lição que deu, pela qual, muito grato, agradeço,
o professor Jonas Queiroz – definitivamente, um homem sagaz.
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
Praxedes, o tranquilão
Mas eu dizia que, em uma segunda-feira comum do mês de março, Praxedes saía da repartição quando percebeu que, enquanto estivera trabalhando, algum motorista descuidado bateu na traseira do seu carro, que estava estacionado. Indiferente, Praxedes acenou para o porteiro na guarita, despediu-se como de costume, engatou a primeira marcha, e partiu. Nada é capaz de afetar esse bom homem.
O infortúnio faz demandar novo processo de pesquisa. Mais uma volta no relógio é necessária até que Praxedes cumpra sua missão naquele estabelecimento. Ele deixa o local levando uma gravata preta com quadradinhos brancos.
Já são quase dez da noite quando Praxedes se torna apto a regressar a seu aconchegante lar. Exausto, ele opta por descer de elevador, a caminho, mais uma vez, do estacionamento. Praxedes almeja deitar em seu sofá, ler o jornal do dia, com as notícias já envelhecidas, talvez descalçar os sapatos.
Nesse momento, ainda vivencia mais uma desagradável surpresa. Devido a uma pane elétrica, o elevador enguiça no meio do caminho. “Mas será possível?” – ele matuta, apertando uma mão na outra.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2016
A kombi
_Hahaha!
_Ééé...! Hahaha...
(De repente, o semblante do primeiro sujeito fica sério).
_Mudando de assunto... preciso falar uma coisa séria contigo.
(O semblante do segundo sujeito também fica sério).
_(...).
_Estão falando mal de você por aí. Na verdade, coisa absurda. Achei bizarro. Por isso vou te falar.
_Han???
_Vou te falar porque sou seu parceiro.
_(...)?
_É o seguinte. Se prepara. Estão dizendo que você tá morando no estacionamento da firma. No es-ta-cio-na-men-to! É, que se mudou pra cá de vez. E que tá vivendo dentro dessa kombi aí. Entregou o apartamento e se mudou pra kombi. Eu te falei que era bizarro...
_QUÊ???
_É...! Disseram que você tá dando uma de joão-sem-braço. Pra não gastar com moradia, gasolina e tudo o mais, veio morar na kombi. Foda né. Olha só, já tem um mês que tô ouvindo esses burburinhos pelos corredores.
_Velho, que bizarro...
_É, sacanagem desse pessoal. Mas olha, tá todo mundo sabendo. Só se fala disso.
_Putz...
(Instante de silêncio).
_Mas você num tá morando na kombi não, né, velho...?
_Claro que não.
_Pois é, eu sei... Mas é que o pessoal chega cedinho, a kombi tá aí. Vai todo mundo embora, fica só você, a kombi no mesmo lugar. A galera manja que você gosta dessa rua, tem boteco perto, tem padaria...
_(...).
(Silêncio de dois segundos).
_Mas tem colchão lá dentro da kombi, num tem?
_Tem, claro. Vai que aparece uma mocinha, rola um amasso... Ela aparece de surpresa aqui na kombi... Sabe como é, pô...!
_Hehe, entendo, sei como é.
_Pois então.
(Dez segundos de silêncio).
_Mas tem chegado encomenda pra você aí na kombi, que eu vi. Carteiro já teve aí, que eu sei...
_Meu prédio tá sem porteiro. Tô pedindo pra entregar tudo aqui, ora.
(Cinco segundos de silêncio).
_E tem mais né, velho... Até seu cachorro tá amarrado aí na kombi.
_Ah, esses dias tá chovendo, muito trovão. O Rex fica com medo. Trouxe ele por isso.
_Pode crer.
(Cinco segundos de silêncio).
_Ok, o cachorro é de boa. Mas e esse galinheiro do lado da kombi? Já até te vi jogando milho pras galinhas...!
_É que eu aprecio muito um ovo frito, de vez em quando e...
_Ahá! Então você admite que tem um fogão dentro da kombi?!
_Bem, um fogareiro, na verdade.
_(...).
_(...).
_Cara, você é muito estranho. Tô vendo que você tirou as rodas da sua kombi! Cadê as rodas? As quatro? Por que tirou as rodas???
_Ah, é mesmo. Mandei reformar. Elas empenaram. As quatro.
_(...).
_(...).
_Ei! Tem uma senhora ali batendo na porta da kombi!
_Ahn?... Ah, tem, não conheço não...
_Opa, aquela ali não é a sua mãe???
_Ih, oh, é mesmo...
_SUA MÃE, CARA! Sua mãe não mora no Paraná??? Quê que tá acontecendo aqui? Você passou o endereço da kombi pra sua mãe vir te visitar, é isso!!?
_Não, eu... nada disso...! Espera só um instante, brother. Vou lá falar com ela. Fica aqui, que eu já volto. Ou melhor, eu te ligo depois. Ou melhor, vou lá na sua casa mais tarde.
_Não, melhor não... deixa quieto. Não estarei em casa não.
_Ok, depois eu te ligo.
_Sério, num liga não. Tô sem celular, tô sem e-mail também!
_Ok, vou lá ver o que minha mãe quer. A gente se vê.
_(...).
_(...).
(Depois desse episódio, os dois amigos nunca mais foram vistos juntos. Rolou nos corredores da firma um burburinho de que eles haviam brigado feio).
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
O isolador de alcaloides
Logo pela manhã, o alarde foi dado: —Douglas isolou três alcaloides!
E você não imagina a danada da confusão que isso deu. Ainda mais porque o Douglas estava desaparecido. Desde a terça-feira, ninguém tinha notícias dele. E agora essa novidade meio sem pé nem cabeça.
Seu amigo, o Marcos, morava com ele. Foi o primeiro a se angustiar: —Alô, dona Selma. Tô ligando porque ando preocupado com o Douglas. Desde a terça-feira que ninguém sabe do seu paradeiro. A última coisa que se soube dele... é que tinha isolado três alcaloides. Fato é que escafedeu-se há dias!
—Ai meu Deuuus! Eu sempre falei pro meu menino... não mexe com essas coisas... não anda com má companhia... Ai meu Deuuus...
O Douglas nem é mais menino, como pressupõe sua mãe. Já passou dos trinta e poucos anos.
"Bom, melhor avisar à noiva do Douglas", atinou Marcos. O Douglas não tem família em Belo Horizonte. Sua noiva mora no norte de Minas. —O QUÊ??? Ele isolou três alcaloides??? Nossa... conheço o Douglas há sete anos... ele nunca tinha feito isso...
O dia foi passando e nada do Douglas dar as caras.
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Sabia-se que o Matheus era amigo antigo do Douglas — que como eu já disse, não tinha familiares na capital. —Sei dele não... Nem tava sabendo que mexia com alcaloides...
Reitero que tudo isso foi o Marcos (que mora com o Douglas) investigando. Ao averiguar aqui e ali, Marcos soube que a galera do futebol abriu várias cervejas depois da pelada, para comemorar o caso do isolamento dos tais três alcaloides. Mas por lá também ninguém tinha pista de onde estaria o Douglas.
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Marcos decidiu então acionar outros amigos em comum. Recorreu ao Willian, mas foi em vão: —Alcaloides, moço? Não manjo nada dessas paradas de eletricidade.
Então passou por ali o Renan: —O Douglão isolou os alcaloides? Alcaloides, que maneiro..., forjou, ele, uma reflexão.
A polêmica logo chegou aos ouvidos do Reginaldo, mas este também não entendia bulhufas de alcaloides, nem de nenhum outro tema relacionado à física quântica. Assim mesmo, questionou: —TRÊÊS???, fingindo estar espantado quanto ao expressivo número de alcaloides envolvidos em tal contexto de isolamento.
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A coisa começou a apimentar quando o Ulisses tomou parte. —Que história é essa de isolar? Não podemos isolar ninguém! Pelo contrário, temos de acolher!
E o Ulisses era primo do vice-prefeito, que também meteu seu bedelho: emitiu carta oficial de repúdio ao isolamento de minorias, em nome do partido. Num piscar de olhos, o ofício se alastrou por toda a imprensa local. E daí despertou a atenção do pessoal dos direitos humanos. Ativistas de todas as causas se manifestaram nas redes sociais: os comunistas, os anarquistas, os feministas, os machistas, os veganos, os direitistas e esquerdistas. O movimento trabalhista também figurou em evidência. Salvo engano, os alcaloides, em algum momento desse alvoroço, foram confundidos com os debiloides. Não sei se entendi bem, mas parece que os defensores do uso de células-tronco, que andavam sumidos, também teriam encontrado uma brecha para voltar à tona. O povo foi às ruas na sexta-feira, após o expediente, ainda que sem uma demanda consensual pela qual protestar. Queimaram um boneco inflável que replicava o Douglão. Houve vandalismo.
Até ouvi dizer que teve mais um monte de repercussão do outro lado da cidade, mas não sei ao certo.
Depois chegou o fim de semana, e os erros de arbitragem do campeonato brasileiro voltaram a prevalecer nas rodas de conversa, comprovando que a memória dos cidadãos é mesmo curta.
Como é possível presumir, ninguém nessa história sabe lá o que são alcaloides ou sobre a viabilidade de isolá-los. A mãe do Douglas não sabe, tampouco a noiva, nem sequer os amigos, muito menos a sociedade. Eu também não faço ideia.
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terça-feira, 23 de junho de 2015
José Justo, o abençoado
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A figura mais lúcida àquela altura era Dona Aparecida, senhorita cuja presença era sempre muito marcante em quaisquer ambientes. Por sinal, foi ela quem tomou a palavra, emocionada: “Para honra do finado locutor Bento Batista, é nosso dever amar e respeitar o novo prefeito José Justo! De certo, Zé Justo fazia jus à confiança de Bento Batista, como este fez questão de nos demonstrar em seu derradeiro suspiro de vida!” – chorava a dama.
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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
O gueto
sexta-feira, 11 de julho de 2014
O dia em que Eberclei plantou três árvores no seu quintal
'Puta cara nojento...' — eu matutei.
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De quebra, o escroto do Eberclei dissertou acerca da corrupção que é uma praga brasileira, graças à qual não há mais como salvar o futuro do país. E enfim despediu-se, tal ordinário, admitindo que deverá ir para o inferno quando morrer. Como se eu já não soubesse disso.
O puto do Eberclei me deixa de baixo astral. Eu sempre penso: 'Puta cara chato... Nunca mais quero encontrar esse cretino'.
Infelizmente, hoje ia chegando ao trabalho quando tive o desprazer de topar de novo com o meliante. Foi de repente, não deu para desviar a rota. Já improvisava uma desculpa para me mandar dali. Mas Eberclei surpreendeu, exclamando: “Velho, como cê tá bonito!”.
Achei aquilo estranho.
Pensei: 'Que porra é essa... Puta cara contraditório, volúvel do car#lho'.
Em alguns instantes de conversa, em meio à contação de casos triviais, ele enumerou: “Plantei três árvores lá
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Quanto a mim, nunca eu o perdoarei. Puta cara volúvel do car#lho!
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
O cara padrão
Não chegamos a ser grandes amigos, mas por alguma razão eu realmente gostava dessa garota.
Não chegamos a ser grandes amigos, mas eu gostava bem desse rapaz.
Essa introdução, com a qual acabei me empolgando, deu-se apenas para ilustrar o quão rica pode se tornar a história de um indivíduo quando ele descobre que tem clones espalhados pelo mundo.
Mais recentemente, circulou na internet uma foto em que eu, supostamente, tocava contrabaixo em uma banda de rock. Mas quem me conhece sabe que entendo tanto de contrabaixo quanto sobre embreagem de foguete. Ainda assim, amigos íntimos, colegas de todas as gerações e até meu pai veio se queixar por não tê-lo chamado ao show.
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
Paradigmas do menino Eberclei
Ah, mas das meninas ele realmente gostou.
O sotaque era bonitinho e até a futilidade que detectou nas mais patricinhas era, para Eberclei, interessante. A primeira tentativa, porém, de dialogar com uma colega de classe foi um fiasco: apresentou-se, e à primeira reação da menina, ele descobriu que seu nome de batismo era ridículo. “Putz! Sério? Eberclei?”. Decidiu que não iria às calouradas.
Certo dia, Eberclei ficou até as dezoito horas na firma. Havia recentemente largado os cafezinhos, sendo promovido a carimbador de documentos, e o serviço ficou mais pesado. Nessa ocasião, pôde bisbilhotar a rainha de seus sonhos na saída do trampo.
“Desgraçado...”.
"Maldito!".
Jogou fora a caneta e regressou calmo, o menino Éber.