terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Em seus fones de ouvido

Caminhando ele vai, tão sofrido quanto um barco que não tem água por onde flutuar. Um barco à deriva que tira forças, não se sabe de onde, para se arrastar num oceano de coisas frenéticas e sem sentido. Seus fones de ouvido servem como um cobertor de criança na madrugada escura.

— A criança, quando cresce, descobre que o bicho-papão que habita debaixo do asfalto é muito mais monstruoso.

Ele passa por uma banca de revistas, relicário de um passado analógico. O jornaleiro, de olhar perdido, observa os carros, os homens e as mulheres com suas telas e fones. Os cachorros vadios, a fumaça a passar, o barulho a passar.

— O jornaleiro é o espectador melancólico de um filme sem fim, de cenas repetidas.

Caminhando ele segue, em meio a centenas de milhões de outros cidadãos pariformes. O som em seus fones de ouvido, tão particular, transfigura o caos urbano em uma espécie de sinfonia dissonante, não existe consenso nem harmonia. Um morador de rua delirante fala em direção ao ar, impuro ar. Por sinal, todos nas ruas são prisioneiros de devaneios mentais, que compartilham com as próprias sombras — público leal, público solidário. Todos nas ruas são frios como sombras.

— No interior da mente, prevalece o caos de vozes, segredos, medos, planos ansiosos.

Num outdoor, sorri uma menina de dentes tão brancos como a paz inalcançável. É uma ilha de felicidade plástica. Seu sorriso produzido vende algo que pode ser usado para varrer a solidão, ou aspirá-la, ou traduzi-la para um idioma inteligível, ou disfarçá-la com beleza falsa.

— A menina de sorriso branco tenta vender um antídoto que não existe. 

Os pedestres, surdos com mil sons auriculares, andejam, sempre a um passo de serem atropelados. Os motoristas, enjaulados em suas cápsulas de metal, perambulam pelas ruas como autômatos. A cada mínima oportunidade, automáticos como robôs, desbloqueiam seus celulares.

— E, assim, o sinal vermelho é o gatilho para um disparo em direção ao absoluto nada. 

Caminhando seguem todos, mas os olhares não se cruzam porque ninguém mais tem olhos. Seus corpos são porta-aviões onde as almas tentam, mas não conseguem, pousar. Na metrópole, milhões se atravessam, coexistindo sem se encontrarem. Os prédios são mausoléus de sonhos empilhados, esquecidos como revistas velhas. Lá embaixo, as calçadas são trilhas de espíritos errantes. 

Uma folha seca dança no ar, ao sabor do vento. Sem destino, sem rumo. Gira, sem sentido, por sobre o asfalto caótico. Os cidadãos, inconclusos, vazios, também flutuam por ali, bailando ao sabor das suas rotinas bestas. 

Em seus fones de ouvido, persistem melodias que embalam a cidade insone em seu ritmo insuportável. — Por essas e outras, eu quero muito ter um galinheiro. Quero com toda a força da minha alma.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Voar, voar


Mais uma tarde cinza na metrópole, e o homem entediado arrastava-se pelos corredores da sua mente caótica. Seus pensamentos, como folhas secas, caíam no solo rachado da mediocridade. O tédio era um bicho sem esperanças num deserto sem ideias. 

Lá embaixo havia um borrão insano, que o homem aborrecido via da janela do décimo andar. O horizonte vazio acima de seus olhos, em direção ao infinito, era um convite suculento para que saltasse a voar, mas o juízo anulava essa possibilidade, definitivamente.

Imaginou-se então com as asas de um corvo solitário. Com penas negras e sombrias, assim como sua realidade de palavras não ditas, sonhos pela metade, energia represada. Seu desejo avassalador era voar catártico, gritando até se esgoelar, até se esgotar. Voaria o mais alto e o mais rápido que conseguisse, num disparo cego rumo ao êxtase. Voar, voar, subir, subir — ele sonhava como sonhou Ícaro.

Tolice.

A gravidade, carcereira implacável, o encarava com desdém. Grilhões invisíveis prendiam-no aos tacos do chão insosso, enquanto as engrenagens do seu relógio besta sussurravam um tiquetaque insuportável.

Corvo preto e solitário — inflou os pulmões e suspirou. Queria rasgar o céu que via da janela; queria rasgar as roupas e vestir-se de penas negras.

Fechou os olhos e vislumbrou as nuvens, ilhas flutuantes. A cidade lá embaixo era só um mamífero gigante que agonizava com suas veias entupidas de carros.

Lúcido e sem ar, ele sufocava mais uma vez: ilusões, fantasias. Quimeras. O homem cativo voltava então para o interior de suas asas que não existiam, dobradas como as páginas de um livro nunca lido. Tempo perdido, tempo perdido — procurava o ar, mas não conseguia.

Quase todas as noites, ele sonhava o mesmo sonho bom e bobo. Todos os dias, da janela do décimo andar, o homem monótono olhava com desejo para o horizonte inalcançável. 

E lamentava em voz alta: ai que bosta sô.