segunda-feira, 22 de abril de 2024

Voar, voar


Mais uma tarde cinza na metrópole, e o homem entediado arrastava-se pelos corredores da sua mente caótica. Seus pensamentos, como folhas secas, caíam no solo rachado da mediocridade. O tédio era um bicho sem esperanças num deserto sem ideias. 

Lá embaixo havia um borrão insano, que o homem aborrecido via da janela do décimo andar. O horizonte vazio acima de seus olhos, em direção ao infinito, era um convite suculento para que saltasse a voar, mas o juízo anulava essa possibilidade, definitivamente.

Imaginou-se então com as asas de um corvo solitário. Com penas negras e sombrias, assim como sua realidade de palavras não ditas, sonhos pela metade, energia represada. Seu desejo avassalador era voar catártico, gritando até se esgoelar, até se esgotar. Voaria o mais alto e o mais rápido que conseguisse, num disparo cego rumo ao êxtase. Voar, voar, subir, subir — ele sonhava como sonhou Ícaro.

Tolice.

A gravidade, carcereira implacável, o encarava com desdém. Grilhões invisíveis prendiam-no aos tacos do chão insosso, enquanto as engrenagens do seu relógio besta sussurravam um tiquetaque insuportável.

Corvo preto e solitário — inflou os pulmões e suspirou. Queria rasgar o céu que via da janela; queria rasgar as roupas e vestir-se de penas negras.

Fechou os olhos e vislumbrou as nuvens, ilhas flutuantes. A cidade lá embaixo era só um mamífero gigante que agonizava com suas veias entupidas de carros.

Lúcido e sem ar, ele sufocava mais uma vez: ilusões, fantasias. Quimeras. O homem cativo voltava então para o interior de suas asas que não existiam, dobradas como as páginas de um livro nunca lido. Tempo perdido, tempo perdido — procurava o ar, mas não conseguia.

Quase todas as noites, ele sonhava o mesmo sonho bom e bobo. Todos os dias, da janela do décimo andar, o homem monótono olhava com desejo para o horizonte inalcançável. 

E lamentava em voz alta: ai que bosta sô.

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