segunda-feira, 22 de abril de 2024

Voar, voar


Mais uma tarde cinza na metrópole, e o homem entediado arrastava-se pelos corredores da sua mente caótica. Seus pensamentos, como folhas secas, caíam no solo rachado da mediocridade. O tédio era um bicho sem esperanças num deserto sem ideias. 

Lá embaixo havia um borrão insano, que o homem aborrecido via da janela do décimo andar. O horizonte vazio acima de seus olhos, em direção ao infinito, era um convite suculento para que saltasse a voar, mas o juízo anulava essa possibilidade, definitivamente.

Imaginou-se então com as asas de um corvo solitário. Com penas negras e sombrias, assim como sua realidade de palavras não ditas, sonhos pela metade, energia represada. Seu desejo avassalador era voar catártico, gritando até se esgoelar, até se esgotar. Voaria o mais alto e o mais rápido que conseguisse, num disparo cego rumo ao êxtase. Voar, voar, subir, subir — ele sonhava como sonhou Ícaro.

Tolice.

A gravidade, carcereira implacável, o encarava com desdém. Grilhões invisíveis prendiam-no aos tacos do chão insosso, enquanto as engrenagens do seu relógio besta sussurravam um tiquetaque insuportável.

Corvo preto e solitário — inflou os pulmões e suspirou. Queria rasgar o céu que via da janela; queria rasgar as roupas e vestir-se de penas negras.

Fechou os olhos e vislumbrou as nuvens, ilhas flutuantes. A cidade lá embaixo era só um mamífero gigante que agonizava com suas veias entupidas de carros.

Lúcido e sem ar, ele sufocava mais uma vez: ilusões, fantasias. Quimeras. O homem cativo voltava então para o interior de suas asas que não existiam, dobradas como as páginas de um livro nunca lido. Tempo perdido, tempo perdido — procurava o ar, mas não conseguia.

Quase todas as noites, ele sonhava o mesmo sonho bom e bobo. Todos os dias, da janela do décimo andar, o homem monótono olhava com desejo para o horizonte inalcançável. 

E lamentava em voz alta: ai que bosta sô.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O espião

Disseram-me que aconteceu assim, e não sei se é verdade, mas acho bem plausível. Essas histórias de extraterrestres nunca parecem fiáveis, mas, afinal, quem me contou foi pessoa de confiança. Só sei o que me contaram e não sei mais detalhes.

Sucedeu que havia um indivíduo extraterrestre fazendo ronda numa cidade populosa aqui nas imediações. Descera de sua nave num descampado e ficou andando disfarçado no meio da multidão, observando tudo o que podia. Ora fazia anotações num bloquinho cintilante, ora expedia relatórios via radinho cósmico.

Entrou numa padaria, tomou café com pão de queijo. Comprou um jornal e leu sentado no banco da praça. Não sabia ler no idioma da Terra, obviamente. Brincou com um cachorrinho da rua.

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Adentrou também um anfiteatro. Ali havia um numeroso grupo de homens trajando terno e gravata. Eles se alternavam à tribuna: um falava e, em seguida, passava a palavra para o colega. Outras dezenas de pessoas assistiam em silêncio, respeitosamente. 

O ET achou aquilo intrigante e muito suspeito. Por que diabos revezam os oradores? Por que os homens usam roupas iguais, com tanto pano, neste calorão? E sobre o que deliberam com tanta seriedade?

Ao cabo de cada pronunciamento, todo o auditório aplaudia, e esse ritual bizarro deixava o ET de antenas em pé. Por que batem as próprias mãos, umas nas outras? Que coisa sem nexo! À medida que se espantava, o ET registrava coisas no seu bloquinho e emitia, ao radinho, sons que são indecifráveis para nós, humanos.

A cada sessão de aplausos, o verdinho entrava em parafuso. Ele constatava, horrorizado, que as pessoas iniciavam e cessavam as palmas quase simultaneamente. Como é possível tal sincronia? E que mau gosto! O barulho de mãos e dedos se chocando é insuportável! O ET coçava seu enorme cabeção, atento aos mínimos detalhes, à espreita.

Então um homem aparentemente mais importante do que os demais subiu as escadinhas do palco e se apoderou do microfone. 

E o ET analisando a cena. 

A fala do palestrante, que parecia espirituosa, era, de quando em quando, interrompida por aplausos. 

E o ET ficando cada vez mais incomodado. 

A interrupção aconteceu em três ou quatro momentos, sendo que nenhum deles pareceu natural ou inofensivo aos olhos do extraterrestre cabeçudo e verde.

Quando, enfim, a autoridade terminou seu discurso, a plateia inteira se levantou das poltronas, como se executasse uma coreografia. Começaram a aplaudir de pé, muito mais efusivamente. O ET, em estado de alerta, examinava o cenário, com as pupilas dilatadas e todos os seus sentidos aguçados. 

O conferencista, então, cumprimentou seus entusiasmados espectadores, curvando-se em todas as direções, num gesto de reverência. Essa atitude suscitou ainda mais aplausos, que foram se avolumando como trovões mensageiros de uma tempestade iminente.

Para o ET, foi a gota d'água. No radinho, ele comunicou sua decisão, que foi de imediato avalizada por outra entidade, provavelmente o chefe dos ETs. Ato contínuo, e por via das dúvidas, pelo sim pelo não, e impulsivamente, o ET, num rompante, por precaução, explodiu o planeta Terra e aniquilou a humanidade.

Aquilo estava ficando perigoso demais.

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Meu reino

Tenho três leões belíssimos e imensos. Um deles é altivo, imponente e carnívoro, como se fosse o rei da selva; guardião, predador. O segundo é pensativo: vive a pensar e faz cara de pensador. O terceiro, nem sei. Vieram da China e demoraram quase um milhão de anos para chegar ao meu endereço em Belo Horizonte. Quando chegaram, emoldurei-os. Hoje são protagonistas na parede da sala.

Abaixo dos felinos, meu sofá se expande, igualmente belo e gigante. Vez ou outra, mando lavar ou reformar. Troco sua cor, desde que seja para azul. E por falar em azul, tenho um violão vermelhíssimo, com angelicais cordas de aço. Prefiro cordas de nylon, mas quando o vendedor perguntou aço?, respondi sim querendo dizer não.

O banheiro é moderno, mas o chuveiro funciona mal. Provavelmente porque o comprei com a voltagem errada. Respondi sim ao vendedor querendo dizer não. A geladeira está sempre repleta de cervejas. Se eu as bebesse, ela esvaziaria. Como não as bebo, permanece cheia. Na cozinha há inúmeras plantinhas. Algumas comprei na floricultura, outras nasceram por geração espontânea. Toda sexta-feira dou água a elas, mas elas nunca me dão nada. Por isso, cuidar das plantas é um exercício de altruísmo. Elas bebem água e nada acontece. As mais ingratas um dia morrem.

Quando mais jovem, eu era capaz de me curar de qualquer doença tomando o máximo de água que aguentasse. Enrolava-me com uma dezena de cobertores e concebia, dessa forma, um casulo superaquecido no interior do qual eu transpirava caoticamente. Conforme suava e urinava, eu bebia mais água e, assim, continuamente, ia fazendo, até curar-me completamente. Nunca falhou.

Todas as noites, minha última visão, antes de adormecer, é da luz fortíssima da luminária, virada para a parede do canto, e também do livro e da cara de Jesus. Ali me deito, leio e sonho com as coisas mais loucas. O lado direito da cama pertence à minha pequena, que não gosta da luminária acesa. Acato sim querendo negar não. Não sei seu nome. Só sei que tem a letra L. Por sinal, estabeleci, desde sempre, que todos os nomes de mulher deveriam ter a letra L. Sem o L, parece faltar a leveza necessária ao feminino. Parece faltar lirismo. Falta luxúria. Falta linearidade, falta lógica.

A luz lilás da luminária, o livro lúdico, o lindo Jesus. Um dia, uma menina de apenas oito anos de idade pintou um retrato perfeito de Jesus. Isso me mobilizou além da conta porque a artista tivera visões da dimensão celestial e, mediante essa experiência, desenhou a imagem do Filho de Deus, exatamente conforme ela havia visto. Creio que o retrato seja mesmo fidedigno, mas, ainda que não o fosse... poxa, é absolutamente impressionante que uma criança seja capaz de pintar um retrato tão realista.

A luminária que ofusca, o livro, a cara de Jesus. Talvez eu tenha lido dez por cento dos livros que armazeno. Alguns são clássicos da literatura, outros versam sobre Freud, outros sobre Jesus. Queria um livro que misturasse tudo isso. E também um Big Mac, de madrugada sempre tenho fome. E também uma pequena, com a letra L. E um leal leão.

O outro chuveiro é eficaz. Debaixo dele desapareço e canto. A voz anda grave e ressonante, por causa da gripe. Se fosse mais jovem, eu me embolaria em dez cobertores até suar e ficar curado. 

Pra que tantos livros?

Preciso trocar a lâmpada da luminária por uma mais branda. O livro, a cara de Jesus, vestido com vestes brancas. Em qualquer direção, ele me olha, como fazia a Monalisa. E eu me pergunto: o que é que eu tô fazendo aqui? Já nem sei. Pra que tantas roupas? Muitas encolheram, ou fui eu que engordei, nem sei.

Toda noite, os leões, a luz, o livro, Jesus. Ontem o Bruno, do Biquini, não cantou aquela canção segundo a qual a sua casa é seu reino. Sou muito ídolo do Bruno Gouveia. Ou melhor, sou fã desse cantor. Já nem sei.

Eu sei é que toda essa adrenalina não me deixa dormir.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Ideias para o mundo começar de novo – PARTE UM

É inegável que a humanidade se encontra,
desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada

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Pergunte a um avestruz o que acontece, desde que o mundo é mundo, com as pessoas que, em vez de morrer, envelhecem e vão envelhecendo mais e mais. 

Um avestruz, ou até mesmo um bode, saberá lhe dizer que a inteligência de um velho fica lenta, assim como o metabolismo. A visão embaça, a surdez ataca. O sono é mais difícil, o fôlego inexiste. Os músculos e ossos enfraquecem, a pele murcha, os dentes descolam. O ânimo esmorece, as doenças ficam recorrentes.

Dores, simplesmente, emergem, não se sabe de onde.

A mobilidade enferruja. A memória falha. As esperanças arrefecem. A solidão faz companhia. E muito mais.


Em contrapartida, na maior parte dos casos, a velhice contempla seus indivíduos com uma reserva de serenidade, que vem do desapego, que aplaca a ansiedade e traz sossego. Poxa, isso é realmente bem sensacional! Mesmo assim, é inegável que a humanidade se encontra, desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada. Especialmente porque as dinâmicas do mundo, portanto, pertencem e são dominadas por aqueles que ainda não envelheceram demais.

E isso, poxa… isso não é legal — o que justifica minha mais nova e utópica proposta, que, assim exijo, deverá ser levada em conta no caso de, algum dia, o mundo precisar ser refeito, começar tudo de novo.

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Neste ponto, abandono a modéstia para anunciar que minha ideia é totalmente original e absolutamente viável. Além disso, é de facílima execução pelo Criador (que, como sabemos, tem um portfólio pra ninguém botar defeito, e ainda por cima é onipotente).

Não será preciso mexer em muita coisa na natureza do homo sapiens, não, nada disso. Em respeito à inevitável finitude da vida como a conhecemos, não ousaria reforçar a saúde universal da humanidade, nem nossas potências. Entendo que a debilitação natural do corpo e da mente, assim como a gradativa indisposição generalizada, que tem como consequência a aceitação de tudo isso, são mecanismos gentilmente programados para que nos desliguemos, aos pouquinhos, da vida terrena.

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Eis então, e finalmente, o pulo do gato para um novo planejamento da nossa espécie (lembrando que meu projeto buscou criar uma vantagem significativa para os mais idosos, sem afetar o ciclo de vida humano ou causar desequilíbrios de quaisquer ordens):

Um perfume natural unanimemente sublime; suave e ao mesmo tempo enfeitiçante, que a cada dia irá se tornando ainda mais agradável. Mas não é só isso: tal elixir funcionará também como um purificador do ar ambiente. Trará frescor, bem-estar — e até paz.

Eu explico. Na minha nova versão do ser humano, já por volta dos 35 ou, no mais tardar, aos 40 anos de idade, passa a ser perceptível o comecinho da produção, pelo organismo, de um perfume natural — que, progressivamente, anula nossos odores corporais característicos. Aqueles que a gente se habituou a detestar. 

Sublinho que será impossível replicar tal fragrância na indústria, da mesma forma que não se pode fabricar um pôr do Sol, ou um tatu-bola. Enfim, uma essência continuamente fresca, equilibrada, na medida certa. Exclusiva para cada pessoa e fascinante para todas elas. 

Dessa forma, aos 50 anos de idade, todos seriam dotados de uma virtude incrivelmente sedutora:

“Olha só como o fulano envelheceu: está calvo, enrugado e desgastado. E que cheiro maravilhoso tem esse fulano!”

Seria mais ou menos assim.

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Por volta dos 65 anos, a coisa já ficará seríssima. Uma senhora que chegar à sua janela no segundo andar atrairá atenções e encantos de todos os que transitarem por ali. Bebês desejarão pendurar-se nela. Seu marido nunca pensará em trocá-la por uma mais jovem. Todas as noites dormirão agarradinhos e, daquela fusão de idosos no leito conjugal, emanará o mais perfeito aroma de todas as flores da galáxia.

Um senhorzinho de 80 anos causará alvoroço toda vez que pisar fora de casa, apoiando-se em sua bengala. No meu mundo ideal, esse vovô nunca está sozinho. Os jovens param para conversar, ouvir seus conselhos, sentir sua fragrância que tranquiliza e inspira. Seus filhos e netos o visitam todos os dias, fazem mimos e dão abraços a todo instante. Aspirando aquele perfume, sentem-se como que obtendo uma energia inexplicável.

Sobrarão vagas para os idosos que desejarem trabalhar. As mais requintadas lojas terão um ou dois anciãos sentadinhos, num cantinho, em um confortável sofá — climatizando a atmosfera local, suavizando o ambiente, atraindo clientes. Bares mais simplórios contratarão senhores e senhoras para ficarem ali, como bem quiserem estar, anulando o cheiro de cerveja velha e a presença de moscas.

Os governos dos países que tiverem mais dinheiro disponível prospectarão pessoas cada vez mais idosas. (Cheguei a imaginar uma corrida silenciosa disputada pelos Estados Unidos e a União Soviética, em que as potências se empoderariam quanto mais atraíssem cidadãos centenários).

E por falar em poderio, reuniões entre veteranos de guerras antigas serão como espetáculos de essências naturais, bem como encontros de ex-colegas aposentados e decanos de toda ordem, além de bailes da terceira idade, serestas e shows do Roberto Carlos (pressupondo, obviamente, que Roberto Carlos siga sendo o cantor favorito dos idosos no mundo hipotético que descrevo).

Consultórios especializados oferecerão terapias de aroma, visando ao relaxamento e à cura, em recintos onde se convive e se respira com idosos. Nas cidades mais culturais, serão promovidos festivais de imersões olfativas, reunindo protagonistas que, de tão velhinhos, mal conseguirão entender o que se passa...

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Registro e encerro aqui, por ora, meu esboço que, indubitavelmente, vai aprimorar a reescritura do mundo, no caso em que ela venha a se fazer oportuna — lembrando que coisas absurdas podem acontecer, é bom estar sempre atento.

Se o dia desse absurdo enfim chegar, sugiro, a quem puder ou souber dar encaminhamento à instância competente, que o faça, com independência, ou que busque minha consultoria na infinita grande rede onde ninguém está escondido.

É isso.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A lição que deu o Jonas


Solitário, o céu deprimia-se, uma vez que acinzentado: um céu inglês em pleno outubro viçosense. O filme da minha existência parecia-me então passar inteirinho diante dos olhos. Coisa bem semelhante àquilo que sucede quando a gente morre – e morre de uma vez por todas. Dizem que é assim.

Andejando lento, meu horizonte era o prédio das Humanidades, que ficava longe, bem longe. Acho que eu nem queria mesmo chegar ao destino, não.

Sentia-me como na iminência de um duelo sangrento com o professor Jonas Queiroz em seu gabinete. Isso porque o danado não me aprovara, no semestre regular, em sua disciplina, que tratava da formação histórica brasileira. A missão daquele dia era, pois, consumar sua prova final – aquele exame indesejado, que fazemos nas férias, quando não há mais nem um paralelepípedo na universidade, e que pode determinar a falência total de nossos órgãos.

Todos sabemos que quando você caminha sozinho no campus, e vai tentar sua última cartada na prova final de uma disciplina, os cachorrinhos vadios de Viçosa e toda a Via Láctea cochicham, no interior da sua mente, que você é um indigno ou, como queira, um desprezível filhadaputa. Afinal, nem mesmo os insetos merecem fazer prova final, durante as férias, no campus. Debaixo do céu solitário e cinzento. Em pleno outubro.

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A memória errante caçava, então, desvendar as circunstâncias que me haviam conduzido àquela situação. Nesse ponto, digo e reafirmo que eu fora injustiçado, já que havia me preparado como um atleta para a terceira avaliação regular do professor Jonas, depois da qual todos os filhos de Deus se tornariam aptos a gozar suas férias. Juro que meu teste havia sido irrepreensível! Escrevi quatro folhas das quais babava o conhecimento, frente e também verso. Juro que eu sofrera a maior das injustiças! Isso eu juro pelo amor dos meus dois miseráveis filhinhos! E juro nesses termos para deixar bem fiável o meu juramento.

Ainda assim, como o leitor já percebeu, Jonas Queiroz, tão feroz, não me aprovou. Meu castigo foi a compulsória e maldita prova final.

Justamente por causa disso, naquele dia nublado eu estava possesso de raiva quanto às alegações de um tal Gilberto Freyre. Esse autor, se hoje não me falha a memória, falava sobre coisas belas que prevaleciam no Brasil-colônia, como o ar da África, um ar quente e oleoso, que amolecia as durezas germânicas, corrompendo a rigidez moral... Como bem sabemos, essa conversa é típica de um legítimo vigarista ou, se o leitor preferir, um legítimo cafajeste. Determinado em ser aprovado no mais curto dos prazos, estudei a ponto de saber tudo sobre o assunto.

Ainda assim, Jonas Queiroz, tão insensível algoz, não teve piedade. E minha pena era estar solitário em Viçosa durante aquela tarde sombria, submetido à chance derradeira, também conhecida como prova final.

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Divagava eu sob o céu pesado enquanto seguia como um bovino a caminho do abate. Ou como um crucificado a caminho da crucificação. O corolário do triunfo do perverso docente sobre toda a humanidade. Refletia, entre outras coisas, sobre a revolução técnico-científica, e até onde ela nos levaria. Meditava sobre a burguesia, a aristocracia, o pacto colonial.

Sobre os olhos tropicais de Jaqueline.

Ruminava eu, naquele contexto, a respeito da maneira como subsistira a colonização, a escravidão e, claro, o monopólio comercial. E a respeito da falta de caráter de alguns estudantes, da qual se queixara Jonas Queiroz – sempre tão atroz. A Inconfidência Mineira, a Revolta da Vacina, a Revolta de Canudos.

Revoltado, eu me recordava dos lábios carinhosos, da voz penetrante e da pele branquinha de Jaqueline.

Quando você anda no campus deserto, indo fazer, sozinho, uma prova final, você pensa nos colegas que já foram premiados e estão longe, de férias. Você procura no firmamento, por trás das nuvens, um satélite que transmita a onisciência deles para você. Mas isso não passa de uma tolice, posso garantir.

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Desconjuntado, então, adentrei o edifício do Departamento, na justa hora agendada pelas partes. Lá estava Jonas Queiroz, de expressão tenaz, como uma serpente à espreita de um descuido da sua presa. Também lá estava uma mulher que havia sido minha professora no ensino médio.

"Ah, esse garoto é peça rara. É um bom menino".

"É mesmo? Pois pergunte a ele o que faz aqui".

A ironia de Jonas Queiroz, mais seu silêncio fugaz, quase despedaçou minhas esperanças.

Entregou-me a avaliação. Eu o mirava feito um boxeador. Ele se esquivava, seu olhar ricocheteava pela sala. Que diabos seriam as limitações do conceito de família patriarcal? E quanto ao padrão de privacidade de Sevcenko? Salvo engano, esse sujeito é centroavante do Chelsea... Teria o jogador, fora das quatro linhas, um padrão de privacidade diferente dos demais mortais? Quais foram as pressões sofridas pelo antigo sistema colonial para a emancipação política? Opa, essa eu sei mas...

"O tempo já foi", encerrou Jonas Queiroz, cruelmente veloz.

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Permaneci apreensivo durante alguns dias, e devo informar que passei nessa prova final, com 75% de nota, já que respondi três das quatro questões, com maestria, e deixei a outra em branco. Devo dizer também que Jaqueline, que povoava meu pensamento em outubro de 2006, a ponto de tirar-me o foco das demais coisas da vida, segue sendo muito graciosa, e hoje é uma cantora famosa.

Por fim, devo esclarecer que não tenho filhos e, por isso mesmo, não considerei que houvesse problema algum em jurar por eles – seres, assim, fictícios – que eu fora vítima de um julgamento vil e impertinente do professor Jonas, no contexto provisório em que ele me desaprovara no conjunto das avaliações regulares de sua disciplina.

A bem da verdade, ao longo de uma conversa franca e proveitosa que estabelecemos em seu gabinete naquela tarde da prova final, Jonas me ensinou sobre a importância de um conceito que, segundo ele, era comumente negligenciado, tanto por estudantes, quanto por vestibulandos ou concurseiros: a objetividade.

Responder àquilo que está sendo perguntado – definiu ele – em vez de encher quatro folhas com coisas que não estão sendo perguntadas.

O ensinamento pode parecer simples ou banal, mas atesto que é valioso demais, e capaz de nos livrar de armadilhas ao longo da vida, em diversas searas. Devo ao Jonas, portanto, parte das coisas bem sucedidas que conquistei por aí.

Essa foi a lição que deu, pela qual, muito grato, agradeço, o professor Jonas Queiroz – definitivamente, um homem sagaz.



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Praxedes, o tranquilão

Impossível que já tenha havido alguém tão condescendente tal qual o Praxedes. Omisso daqueles fervorosos, é defensor árduo e tácito da convicção de não defender causa nem coisa nenhuma, muito menos de defender-se a si mesmo. Alguns conhecidos o consideram, inclusive, um tremendo bananão. Mas há também quem o tenha como, simplesmente, uma alma generosa.

Antes que eu me complique, relatarei uma série de fatos que sucederam ao longo de uma segunda-feira comum na vida do Praxedes. Assim serei mais preciso ao descrevê-lo. Diz respeito a uma segunda-feira qualquer que ocorreu depois de 56 anos da vida comum do Praxedes.

Devo explicar, primeiramente, que o Praxedes trabalha como servidor público e cumpre algumas tarefas burocráticas. Passa o dia inteiro protocolando, fazendo planilhas, redigindo relatórios que não serão lidos. O Praxedes não se incomoda.

Seus colegas, durante a maior parte do expediente, jogam conversa fora e tomam cafezinho. Às vezes, fazem essas duas coisas ao mesmo tempo e, por essa razão, Praxedes costuma ficar sobrecarregado com as tarefas rotineiras. Mas ele não se importa de permanecer por mais algumas horas na repartição, após o seu horário regular, até terminar todo o serviço.

Com seu modesto salário, sustenta o lar e também arca com as despesas que ele chama de 'caprichos da esposa'. No caso, a mulher gasta com coisas que Praxedes julga desnecessárias. Ele quase não tem tempo para se aborrecer, por isso ostenta sempre um sorriso bobo e vago.

Mas eu dizia que, em uma segunda-feira comum do mês de março, Praxedes saía da repartição quando percebeu que, enquanto estivera trabalhando, algum motorista descuidado bateu na traseira do seu carro, que estava estacionado. Indiferente, Praxedes acenou para o porteiro na guarita, despediu-se como de costume, engatou a primeira marcha, e partiu. Nada é capaz de afetar esse bom homem.

Alguns metros adiante, uma manifestação de populares interditava o trânsito, já caótico, no horário de pico. A rua estava muito tumultuada e barulhenta. Nenhum veículo podia se mover. Praxedes observa a situação pacientemente, através do vidro. Enquanto aguarda parado na via, um assaltante oportunista chega de rompante e lhe subtrai o telefone celular. Praxedes suspira, contrariado.

Já anoitecia quando ele conseguiu chegar ao Shopping Center, onde compraria um presente em ocasião do aniversário do seu sogro. Tal velho, implicante e explorador, refere-se ao Praxedes, invariavelmente, lançando mão da carinhosa alcunha de bundão. Mas isso não chega a causar algum desconforto no Praxedes.

Depois de meia hora na loja de departamentos, o genro escolhe o presente: uma gravata preta com bolinhas brancas. Mas quando vai pagar, o cartão de crédito não passa, pois está com o limite estourado. “Que azar...”, coçou-se, o Praxedes.

Ele então precisa descer quatro lances de escadas rolantes, voltar ao estacionamento e recorrer, no interior de seu carro, ao montinho de dinheiro em espécie que deixara reservado para alguma emergência. Vinte minutos depois, Praxedes volta à loja, mas o produto antes selecionado já havia sido vendido. “Eita... mas que dia azarento, não é mesmo?”, ele pensa.

O infortúnio faz demandar novo processo de pesquisa. Mais uma volta no relógio é necessária até que Praxedes cumpra sua missão naquele estabelecimento. Ele deixa o local levando uma gravata preta com quadradinhos brancos.
Já são quase dez da noite quando Praxedes se torna apto a regressar a seu aconchegante lar. Exausto, ele opta por descer de elevador, a caminho, mais uma vez, do estacionamento. Praxedes almeja deitar em seu sofá, ler o jornal do dia, com as notícias já envelhecidas, talvez descalçar os sapatos.

Nesse momento, ainda vivencia mais uma desagradável surpresa. Devido a uma pane elétrica, o elevador enguiça no meio do caminho. “Mas será possível?” – ele matuta, apertando uma mão na outra.

Sem seu celular ou outro instrumento capaz de distraí-lo, Praxedes permanece quieto, ali trancado, atento somente aos próprios pensamentos. Ele pensa nas suas planilhas e relatórios, no vestido novo da sua esposa e na mensalidade do colégio da filha. Pensa também na ração do cachorro e na missa que ouvira, domingo, na igreja. O elevador fica enguiçado por mais alguns minutos, até que a normalidade é restabelecida. “Agora sim, lá vou eu!”.

Praxedes caminha alguns metros, entra em seu carro. Dirige até a cancela. Insere o cartão de estacionamento no dispositivo. A cancela levanta e esse mesmo dispositivo emite uma voz simpática, feminina. Ele presta atenção. É uma gravação, automática:

 – Agradecemos pela sua visita! Volte sempre!

Praxedes abaixa o vidro. Olha fixamente para aquela coisa com voz robótica. Sua pele se ruboriza e ele extravasa: _VAI PRO INFEEERNO DISGRAAAÇA!!!

Arranca o carro de forma bruta, arranca cantando os pneus. Quem passa ali por perto até se espanta com tamanha selvageria.

Mas Praxedes não liga não. Volta pra casa tranquilão como sempre... Amanhã é terça-feira, será um novo dia!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A kombi

(Dois amigos conversam e riem descontraidamente, durante o intervalo para o almoço, no trampo).

_Hahaha!

_Ééé...! Hahaha...

(De repente, o semblante do primeiro sujeito fica sério).

_Mudando de assunto... preciso falar uma coisa séria contigo.

(O semblante do segundo sujeito também fica sério).

_(...).

_Estão falando mal de você por aí. Na verdade, coisa absurda. Achei bizarro. Por isso vou te falar.

_Han???

_Vou te falar porque sou seu parceiro.

_(...)?

_É o seguinte. Se prepara. Estão dizendo que você tá morando no estacionamento da firma. No es-ta-cio-na-men-to! É, que se mudou pra cá de vez. E que tá vivendo dentro dessa kombi aí. Entregou o apartamento e se mudou pra kombi. Eu te falei que era bizarro...

_QUÊ???

_É...! Disseram que você tá dando uma de joão-sem-braço. Pra não gastar com moradia, gasolina e tudo o mais, veio morar na kombi. Foda né. Olha só, já tem um mês que tô ouvindo esses burburinhos pelos corredores.

_Velho, que bizarro...

_É, sacanagem desse pessoal. Mas olha, tá todo mundo sabendo. Só se fala disso.

_Putz...



(Instante de silêncio).



_Mas você num tá morando na kombi não, né, velho...?

_Claro que não.

_Pois é, eu sei... Mas é que o pessoal chega cedinho, a kombi tá aí. Vai todo mundo embora, fica só você, a kombi no mesmo lugar. A galera manja que você gosta dessa rua, tem boteco perto, tem padaria...

_(...).



(Silêncio de dois segundos).



_Mas tem colchão lá dentro da kombi, num tem?

_Tem, claro. Vai que aparece uma mocinha, rola um amasso... Ela aparece de surpresa aqui na kombi... Sabe como é, pô...!

_Hehe, entendo, sei como é.

_Pois então.



(Dez segundos de silêncio).



_Mas tem chegado encomenda pra você aí na kombi, que eu vi. Carteiro já teve aí, que eu sei...

_Meu prédio tá sem porteiro. Tô pedindo pra entregar tudo aqui, ora.



(Cinco segundos de silêncio).



_E tem mais né, velho... Até seu cachorro tá amarrado aí na kombi.

_Ah, esses dias tá chovendo, muito trovão. O Rex fica com medo. Trouxe ele por isso.

_Pode crer.



(Cinco segundos de silêncio).



_Ok, o cachorro é de boa. Mas e esse galinheiro do lado da kombi? Já até te vi jogando milho pras galinhas...!

_É que eu aprecio muito um ovo frito, de vez em quando e...

_Ahá! Então você admite que tem um fogão dentro da kombi?!

_Bem, um fogareiro, na verdade.

_(...).

_(...).

_Cara, você é muito estranho. Tô vendo que você tirou as rodas da sua kombi! Cadê as rodas? As quatro? Por que tirou as rodas???

_Ah, é mesmo. Mandei reformar. Elas empenaram. As quatro.

_(...).

_(...).

_Ei! Tem uma senhora ali batendo na porta da kombi!

_Ahn?... Ah, tem, não conheço não...

_Opa, aquela ali não é a sua mãe???

_Ih, oh, é mesmo...

_SUA MÃE, CARA! Sua mãe não mora no Paraná??? Quê que tá acontecendo aqui? Você passou o endereço da kombi pra sua mãe vir te visitar, é isso!!?

_Não, eu... nada disso...! Espera só um instante, brother. Vou lá falar com ela. Fica aqui, que eu já volto. Ou melhor, eu te ligo depois. Ou melhor, vou lá na sua casa mais tarde.

_Não, melhor não... deixa quieto. Não estarei em casa não.

_Ok, depois eu te ligo.

_Sério, num liga não. Tô sem celular, tô sem e-mail também!

_Ok, vou lá ver o que minha mãe quer. A gente se vê.

_(...).

_(...).

(Depois desse episódio, os dois amigos nunca mais foram vistos juntos. Rolou nos corredores da firma um burburinho de que eles haviam brigado feio).

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O isolador de alcaloides


Logo pela manhã, o alarde foi dado: —Douglas isolou três alcaloides!

E você não imagina a danada da confusão que isso deu. Ainda mais porque o Douglas estava desaparecido. Desde a terça-feira, ninguém tinha notícias dele. E agora essa novidade meio sem pé nem cabeça.

Seu amigo, o Marcos, morava com ele. Foi o primeiro a se angustiar: —Alô, dona Selma. Tô ligando porque ando preocupado com o Douglas. Desde a terça-feira que ninguém sabe do seu paradeiro. A última coisa que se soube dele... é que tinha isolado três alcaloides. Fato é que escafedeu-se há dias!

—Ai meu Deuuus! Eu sempre falei pro meu menino... não mexe com essas coisas... não anda com má companhia... Ai meu Deuuus...

O Douglas nem é mais menino, como pressupõe sua mãe. Já passou dos trinta e poucos anos.

"Bom, melhor avisar à noiva do Douglas", atinou Marcos. O Douglas não tem família em Belo Horizonte. Sua noiva mora no norte de Minas. —O QUÊ??? Ele isolou três alcaloides??? Nossa... conheço o Douglas há sete anos... ele nunca tinha feito isso...

O dia foi passando e nada do Douglas dar as caras.

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Sabia-se que o Matheus era amigo antigo do Douglas — que como eu já disse, não tinha familiares na capital. —Sei dele não... Nem tava sabendo que mexia com alcaloides...

Reitero que tudo isso foi o Marcos (que mora com o Douglas) investigando. Ao averiguar aqui e ali, Marcos soube que a galera do futebol abriu várias cervejas depois da pelada, para comemorar o caso do isolamento dos tais três alcaloides. Mas por lá também ninguém tinha pista de onde estaria o Douglas.

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Marcos decidiu então acionar outros amigos em comum. Recorreu ao Willian, mas foi em vão: —Alcaloides, moço? Não manjo nada dessas paradas de eletricidade.

Então passou por ali o Renan: —O Douglão isolou os alcaloides? Alcaloides, que maneiro..., forjou, ele, uma reflexão.

A polêmica logo chegou aos ouvidos do Reginaldo, mas este também não entendia bulhufas de alcaloides, nem de nenhum outro tema relacionado à física quântica. Assim mesmo, questionou: —TRÊÊS???, fingindo estar espantado quanto ao expressivo número de alcaloides envolvidos em tal contexto de isolamento.

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A coisa começou a apimentar quando o Ulisses tomou parte. —Que história é essa de isolar? Não podemos isolar ninguém! Pelo contrário, temos de acolher!

E o Ulisses era primo do vice-prefeito, que também meteu seu bedelho: emitiu carta oficial de repúdio ao isolamento de minorias, em nome do partido. Num piscar de olhos, o ofício se alastrou por toda a imprensa local. E daí despertou a atenção do pessoal dos direitos humanos. Ativistas de todas as causas se manifestaram nas redes sociais: os comunistas, os anarquistas, os feministas, os machistas, os veganos, os direitistas e esquerdistas. O movimento trabalhista também figurou em evidência. Salvo engano, os alcaloides, em algum momento desse alvoroço, foram confundidos com os debiloides. Não sei se entendi bem, mas parece que os defensores do uso de células-tronco, que andavam sumidos, também teriam encontrado uma brecha para voltar à tona. O povo foi às ruas na sexta-feira, após o expediente, ainda que sem uma demanda consensual pela qual protestar. Queimaram um boneco inflável que replicava o Douglão. Houve vandalismo.

Até ouvi dizer que teve mais um monte de repercussão do outro lado da cidade, mas não sei ao certo.

Depois chegou o fim de semana, e os erros de arbitragem do campeonato brasileiro voltaram a prevalecer nas rodas de conversa, comprovando que a memória dos cidadãos é mesmo curta.

Como é possível presumir, ninguém nessa história sabe lá o que são alcaloides ou sobre a viabilidade de isolá-los. A mãe do Douglas não sabe, tampouco a noiva, nem sequer os amigos, muito menos a sociedade. Eu também não faço ideia.

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Pensei em perguntar pro próprio Douglas. O problema é que ele até agora não reapareceu.

terça-feira, 23 de junho de 2015

José Justo, o abençoado

Este conto é sobre o fazendeiro José Justo, que de justo não tinha nada.

Desde a primeira infância, José Justo se acostumou a trapacear descaradamente. Na brincadeira de esconde-esconde, tapava os próprios olhos deixando delgada fresta entre os dedos médio e anelar, através da qual tinha absoluto domínio visual de todo o campo observável. Descortinava assim, em poucos instantes, os esconderijos dos coleguinhas. Obtinha satisfatório desempenho no colégio, logrado, invariavelmente, à custa de maquiavélicos esquemas de cola. José Justo também mentia para a mãe, surrupiava trocados na caixinha da igreja, furava filas, enganava as namoradinhas, fraudava até exame de vista.

De pouquinho em pouquinho, José Justo ergueu um império na pequenina cidadezinha, e toda a sua conquista é devida à malandragem natural que Deus lhe deu. Sonegou milhares em impostos na comercialização do café cultivado em sua fazenda. Misturava água aos litros de leite tirados das vacas, antes de vendê-los. Ludibriava até seus próprios bovinos, mesclando farinha de trigo à ração dos animais! Dava golpe em velhinho, mendigo, cego ou em quem quer que fosse. José Justo tornou-se rico e influente no lugarejo. Ficou também famoso por causa de suas picaretagens. (...)
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Na pequenina cidadezinha também vivia outro cidadão influente. Era o locutor de rádio Bento Batista; por sua vez, irrefutavelmente íntegro, admirado, respeitado. Não havia quem não o conhecesse pelo bordão que se popularizou na região:

_A voz tenra e amiga de todas as manhãs!

Bento Batista era benquisto por todos e por isso foi convidado a batizar centenas de crianças nascidas na cidade. Solidário, mantinha, com fundos próprios, uma creche e uma casa de repouso para idosos. Vivia com recursos básicos e partilhava o restante de seus rendimentos. Doou um rim e um pedaço de seu próprio fígado a distintos moribundos.

O radialista era um líder, venerado na comunidade. Gozava de tanto prestígio que dava conselhos ao padre e ao delegado. Fazia visitas à cadeia e conversava amigavelmente com presidiários perigosos. Da última vez em que lá esteve, convenceu a autoridade a soltar um tal ladrão chamado Pedro Furtado. “Ele se regenerou, será homem de bem” – garantiu Bento Batista. E não é que o rapaz tomou jeito mesmo? Hoje é conhecido carinhosamente como Pedrinho, e é competente pedreiro.

Por essas e outras, tudo aquilo que o radialista Bento Batista falava tinha valor de lei por aquelas bandas. (...)

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Mas voltemos ao safado do Zé Justo.

Era ano de eleições municipais, e cismou, o sem-vergonha, de querer ser o novo prefeito da cidadezinha. A princípio não teria chances, por conta de sua péssima popularidade.

Acontece que Zé Justo era ardiloso, daria seu jeito de eleger-se. Sorrateiramente, começou a comprar votos. Dava aos pobres pares de tênis, óculos escuros, relógios e toda sorte de bugigangas – tudo produto contrabandeado. Prometia empregos para famílias inteiras, em repartições que nem sequer existiam. Audacioso, tentou subornar seu adversário único no pleito, de nome João Machado, humilde lenhador. “Sou pobre, mas não sou corrupto” – cortou, convicto, Machado. A disputa haveria de ser limpa. (...)



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Quando chegou o mês de outubro, não se falava em outra coisa na cidadezinha.

“Cara de pau esse Zé! Deviam mandar matar!”, sugeriu Dona Severa.

“Daria tudo para ver o Zé derrotado e humilhado”, respondeu sua comadre, Dona Generosa.

“Não cabe a nós condená-lo!” – amenizava Dona Piedade.

“A eleição será correta e tranquila”, desconversava Seu Pacífico. (...)



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O único mesário, da única sessão eleitoral do município, era o Seu Albino, um bucólico pastor de ovelhas. Ele ficou branco dos pés à cabeça quando recebeu, na noite da véspera das eleições, a proposta de Zé Justo: “Um milhão para multiplicar as cédulas com votos a meu favor”. A oferta era sedutora demais, não havia como declinar. Seu Albino encheria o bolso de dinheiro e sumiria no mundo antes do cabo da apuração.

Na manhã seguinte, logo bem cedinho, foram chegando os votantes da cidadezinha. O Ferreira, cabra gente boa, praticava boca de urna ostentando bandeirinhas de seu candidato preferido. Feitas em casa, com santinhos afixados em espetos de pau. Tudo por ali era muito pitoresco.

Antes do meio-dia, já não faltava mais ninguém para votar. Começou então a contagem.

Estranhamente, foram depositadas cerca de três mil cédulas na única urna disponível, sendo que a cidadezinha tinha pouco mais de dois mil eleitores. O Jacinto, rapaz de sensibilidade aguçada, ficou desconfiado. “Sinto que há alguma coisa errada”, pressentia ele. Mas Jacinto não faria alarde. Essas eleições seriam favas contadas. Mesmo lançando mão das suas maracutaias, o cretino do Zé haveria de perder. (...)

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À noitinha, todos os moradores da pequenina cidadezinha sintonizaram seus radinhos no padrão AM, apreensivos quanto à revelação do candidato vencedor. E especialmente ansiosos porque isso seria mediado pela voz gostosa e afável de Bento Batista. Às dezenove em ponto, o queridíssimo e corretíssimo locutor entrou no ar. O resultado do pleito, que há pouco consultara, com curiosidade, em um papelzinho timbrado, era para ele assombroso e trágico. Em nome da imparcialidade jornalística, no entanto, o nobre radialista foi forçado a engolir sua frustração.

_ Boa noite, ouvintes! Aqui quem vos fala é a voz tenra e amiga de Bento Batista. Tenho em minhas mãos o saldo da apuração. E trata-se certamente de uma surpresa para todos. Pela diferença de apenas vinte votos, foi eleito o candidato José Justo de Jesus. Isso mesmo, podem acreditar: deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

Dona Margarida, que fechava o caixa na sua floricultura, de repente murchou de desgosto. “Eu ouvi direito? O vagabundo do Zé ganhou? E nosso amado locutor, por conta disso, avalia que Deus é justo?!”.

_ Isso mesmo, querido ouvinte! O Zé venceu. Por essa, ninguém esperava. Mas vemos agora que nada é impossível, porque deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

O altifalante do aparelho vociferava e todos se espantavam. Naquele mesmo instante, um velho criador de pássaros, de nome Ícaro, ouvia à transmissão radiofônica no interior da chácara onde trabalhava. Estarrecido, Ícaro disparou pra casa, a fim de repercutir a notícia com a esposa. De tão apressado, por muito pouco não levantou voo. “Escutou isso, mulher? Como assim?! O pilantra do Zé vence e nosso adorado locutor atribui isso à justiça divina?!”.

Bento Batista ainda repetiu mais duas vezes ao microfone, reafirmando para seus milhares de ouvintes:

_Deu Zé Justo! Deu Zé Justo!

Depois sofreu um piripaque do coração e morreu ali mesmo, ao vivo.

Ainda com os ouvidos colados a seus aparelhinhos radiofônicos, e energizados pelo desespero, alguns anciãos, que vadiavam reunidos na pracinha, correram desembestados até duas esquinas adiante, a fim de acionar o chaveiro Xavier para que este desaferrolhasse a porta do prédio que sediava a rádio local.

Feito isso, Dona Socorro, socorrista do posto médico, pôde então subir, às pressas, as longas escadarias do imóvel, rumo ao estúdio de transmissão. Mas logo constatou, muito infelizmente, que não seria possível reanimar o acidentado, já morto. Milhares de espectadores acompanhavam pelo rádio, em tempo real, o fatídico bafafá que sucedia naquela sala. Doutor Nascimento, único obstetra do arraial, interrompeu uma operação de parto para chorar a perda, de joelhos ao chão: “Suas últimas palavras foram de agradecimento a Deus pelo triunfo do Zé... Que santo homem!”, louvava. (...).

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Naquela noite trágica, todos os munícipes compareceram ao velório de Bento Batista. Seu Valente era um dos mais abatidos, mas segurava, corajosamente, o choro. Dona Consolação consolava os presentes; distribuía lencinhos para que secassem as lágrimas. Enquanto isso, o Hilário fazia gracinhas para distrair as crianças, que estavam desoladas.

A figura mais lúcida àquela altura era Dona Aparecida, senhorita cuja presença era sempre muito marcante em quaisquer ambientes. Por sinal, foi ela quem tomou a palavra, emocionada: “Para honra do finado locutor Bento Batista, é nosso dever amar e respeitar o novo prefeito José Justo! De certo, Zé Justo fazia jus à confiança de Bento Batista, como este fez questão de nos demonstrar em seu derradeiro suspiro de vida!” – chorava a dama.

Tal ponderação tocou a consciência daqueles cidadãos, que se arrependeram de terem julgado com tamanha crueldade o fazendeiro José Justo. "Sim! Se era o preferido de Bento Batista, má pessoa não é!", murmuravam entre si.

Na lápide onde jazeu o corpo do idolatrado radialista Bento Batista, foi grafada sua última declaração enquanto encarnado: Deus é justo. (...)


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E foi assim que o fazendeiro José Justo teve a reputação transformada e seguiu nos braços do povo. Ainda que praticasse frequentes cachorragens como mandatário da cidadezinha, sua imagem pública mantinha-se inabalada.

“Abençoado seja! Não é sem razão que seu nome é José Justo!", orgulhavam-se, por ali. 

"Ora, temos cá um homem deveras justo; muito justo, honesto e bom!”, propagavam todos, principalmente o Seu Cícero – bastante reconhecido nas redondezas como sendo um sujeito sincero. 


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O gueto

Vez por outra, faço minhas incursões de retorno ao gueto. Ou melhor, tento fazer isso.

No gueto há muita gente, pouquíssimos com mais do que vinte e três anos de idade. Ali impera a euforia e a liberdade. A noite parece não ter hora para acabar e a pessoa pode ser ela mesma, no gueto. Pode ser quem quiser. E dinheiro nem é importante.

Ali impera o frescor de personalidade. Os assuntos são triviais, as paixões efêmeras. O gueto me faz recordar, com nostalgia, de quando eu pouco me importava com o futuro e com os problemas.

Eu fico só observando tudo. E imaginando onde é que eu me posicionaria ali naquele gueto, caso a ele fosse compatível. Saudosista, brinco de identificar, naqueles rostos eloquentes, minha antiga cambada. Juro que a gente ganhava dessa galera, de hoje em dia.

Eu poderia ser aquele doidinho ali, de barba, cara de avoado. Mas como sou compenetrado e trabalhador, fico só de longe observando tudo.

Vejo a dupla de meninas, que é uma qualquer dupla de meninas até atravessarem a avenida. À medida que se aproximam do gueto, elas se aprochegam entre si. Já no núcleo do gueto, tascam um beijo na boca, meio sem propósito e meio sem nexo.

Em outros tempos, a gente, marmanjos, parava espantado para assistir a um beijo de mulher com mulher. Hoje, a naturalidade arrefece. É como a nota de cem que não impressiona o milionário. Ou como a morte que não choca o combatente de guerra.

Sozinho, goleando a terceira cerveja, fico meio que lamentando por causa dessa inevitável maturidade. Pareço inteligente quando falo com as meninas. A molecagem estampada na minha cara.

O que eu queria mesmo era poder voltar no tempo. "Se não posso voltar no tempo, também não posso voltar ao gueto", determino.

Convicto, vou ao banheiro urinar a quarta e derradeira garrafa. Para depois, aliviado então, pegar o portal de regresso à rotina de IPTU atrasado, promoção no trabalho, multa de trânsito e vontade de casar.

Já vou-me saindo de fininho, sem me despedir dos jovens desconhecidos. É quando ouço balbuciarem a meu respeito, alguns passos atrás: “Ah lá, o doidinho de barba, cara de avoado. Malucão, mijou de porta aberta...”.

Ham... quando esqueço de fechar a porta para mijar sinto que ainda sou um pouquinho malucão.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O dia em que Eberclei plantou três árvores no seu quintal


Todas as vezes em que esbarro por aí com um certo chegado meu, de nome Eberclei, sou abalado por causa da onda de negativismo extremo que emana do sujeito. É um cara durão, meio mau-caráter. Mal-humorado, nada confiável. E de tão puto que sempre está com a própria vida, o cabra é capaz de, em cinco curtos minutinhos de prosa, me contagiar com seu aborrecimento.

Mês passado, por exemplo, assim que me viu numa esquina, o infeliz chegou esbravejando sobre seu time do coração. “Patifes! Fracassados! Perderam a final jogando em casa, estádio cheio. Puta merda!” — introduziu, colérico.

Na sequência, queixou-se do emprego, não aguentava mais aquilo. Já há dois anos era explorado em troca de um salário miserável. E o macambúzio rapaz repetiu três vezes que não tinha perspectivas de crescer profissionalmente. “Assim não dá... que bosta!” — chutou uma pedra.

Eu me arranjava para fugir do assunto, quando o cafajeste interpelou novamente. “Porra, olha só como tô gordo!” — reclamou enquanto empurrava a barriga saliente para o interior da fivela do cinto apertado. Nesse momento enxugou o suor da testa. Não fazia calor, mas ele transpirava.

Então emergiu no repertório do meu interlocutor, sempre pessimista demais, a discussão sobre a fome que assola a humanidade. Ele também falou sobre as guerras e a absoluta impossibilidade de que algum dia impere a boa convivência entre os povos do planeta. Chutou um cachorro que passava inocentemente por ali, o maldito.

'Puta cara nojento...' — eu matutei.

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Em outros dois encontros casuais com o Eberclei, segui me embasbacando com sua infindável lista de lamúrias. Ele jura que no prazo máximo de cinco anos vai faltar água para a maioria da população da Terra. Certificou-me ainda de que a cura da aids não será, jamais, descoberta. 

De quebra, o escroto do Eberclei dissertou acerca da corrupção que é uma praga brasileira, graças à qual não há mais como salvar o futuro do país. E enfim despediu-se, tal ordinário, admitindo que deverá ir para o inferno quando morrer. Como se eu já não soubesse disso. 

O puto do Eberclei me deixa de baixo astral. Eu sempre penso: 'Puta cara chato... Nunca mais quero encontrar esse cretino'.

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Infelizmente, hoje ia chegando ao trabalho quando tive o desprazer de topar de novo com o meliante. Foi de repente, não deu para desviar a rota. Já improvisava uma desculpa para me mandar dali. Mas Eberclei surpreendeu, exclamando: “Velho, como cê tá bonito!”. 

Achei aquilo estranho.

Então ele olhou para o firmamento e comentou sobre nosso privilégio de morar em Belo Horizonte, cidade onde há tão agradável clima. Ameno, pitoresco. “Fomos contemplados! A luz do Sol, o ar da manhã, são tesouros divinos que recebemos de graça...!”. Suspirou como se quisesse engolir tudo aquilo de precioso que havia na natureza.

Sem me deixar responder qualquer coisa, abriu o jornal na página de Economia. “Olha aí rapaz! Taxa recorde de emprego! Esse é o nosso Brasil!”.  

Pensei: 'Que porra é essa... Puta cara contraditório, volúvel do car#lho'.


Aí percebi que Eberclei ostentava olhos brilhantes e estava perfumado. Concluí também que bochechara refrescante enxaguante bucal. 

Em alguns instantes de conversa, em meio à contação de casos triviais, ele enumerou: “Plantei três árvores lá em casa. Tô aprendendo a tocar saxofone. Tô fazendo um curso de massagista, por correspondência. Comprei um skate. Adotei um adorável cachorrinho de rua, paraplégico, o coitadinho”. E não sei o que mais...

Presumi que Eberclei estava realmente feliz. Despediu-se fazendo inédito cafuné no meu cabelo e cantarolando versos em idioma inglês embromado: “Oh, happy day! Oh, happy daaay...”.

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A princípio fiquei muito encafifado quanto a essa nova postura do sujeito. Depois soube o que sucedeu com o safado do Eberclei.

Ele estava na pior até outro dia, mas conheceu uma mocinha durante o fim de semana e ficou apaixonadão. Nem chegaram a beijar na boca nem nada, só paquera mesmo. O suficiente para encher de coisas fofas o seu coraçãozinho!

Por isso anda por aí assoviando, acenando para as velhinhas, abraçando os mendigos.

Quanto a mim, nunca eu o perdoarei. Puta cara volúvel do car#lho!

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O cara padrão

No meu terceiro ano de faculdade em Viçosa, apareceu por lá uma caloura chamada Dayana. Simpática, divertida, sorriso fácil.

Não chegamos a ser grandes amigos, mas por alguma razão eu realmente gostava dessa garota.

E você sabe como é a predisposição dos jovens universitários à paquera: quase em tempo integral, são sentinelas que vigiam quaisquer ambientes na tentativa de detectar potenciais pretendentes. Como decorrência natural desse comportamento, nas idas e vindas entre o pavilhão de aulas e o boteco, não era raro que lábios e corações diversos se testassem, de forma casual e frenética. Girava assim, sem cessar, a engrenagem da sedução na cidade universitária. Dia sim, o outro também...  

Mas quanto à Dayana – fui levado a retomar – nunca, em dois anos de convivência, havia sabido de marmanjo algum que tivesse logrado sucesso em cortejá-la. Talvez fosse demasiado rigorosa no aspecto da pegação; ou apenas discreta, reservada. É possível até que tal impressão de intocabilidade não passasse de fruto da minha desatenção. Enfim, por algum tempo, esse mistério me intrigou.

Até o dia em que a vi aos beijos com o Glauco.

Glauco cursava Economia e era aquilo que se pode chamar de um legítimo protagonista da bebedeira. Dava show nas baladas, sempre muito eufórico, de olhos marejados e avermelhados pela cachaça. 

Não apenas por isso, parecia-se muito comigo; éramos fisicamente parecidos. Alguém, não sei quem, um dia notou a semelhança e eu, que sempre fui meio idiota, gostei da ideia de ter um sósia por aí.

Não chegamos a ser grandes amigos, mas eu gostava bem desse rapaz. 

Quando então o vi de chamegos com a referida caloura, veio-me à tona um raciocínio meio sem cabimento: “Não é que eu e ela formamos um belo casal?”. Juro que pensei isso. E emergiram também alguns planos.
Percebi que poderia ser conveniente e divertido aprontar e sujar o nome do Glauco, partilhando, pois, com ele, a queimação de filme. Fazia minhas estripulias pela cidade, e se me perguntassem o nome: “Sou o Glauco da Economia”. De certa forma, era como usar trajes da invisibilidade. 

Por um tempo, não sei quanto, tal estratégia de autopreservação foi eficaz. Mas tudo desandou quando meu gêmeo, que não era bobo nem nada, passou a fazer a mesma coisa. Libertos das amarras da identidade, tornamo-nos ainda mais propensos a arrumar encrencas. Sempre, secretamente, botando a culpa um no outro.

Conta-se até que, certa vez, teriam me visto namorando pelado com uma mocinha em um canto de um boteco onde passava a estreia do Brasil na Copa de 2006. Blasfêmia! Aposto que foi o safado do Glauco!
Essa introdução, com a qual acabei me empolgando, deu-se apenas para ilustrar o quão rica pode se tornar a história de um indivíduo quando ele descobre que tem clones espalhados pelo mundo.

Isso ocorre tão frequentemente comigo que cheguei à conclusão de que sou um cara basal. Ou seja, sou uma espécie de padrão de feitura física de humanos do sexo masculino, a partir do qual os demais rapazes vão configurando seus traços peculiares. 

Uns dão uma melhorada, uma encolhida ou esticada, pegam uma cor, crescem o nariz ou o pé. Mas tudo começa comigo, exatamente como sou. Portanto, quanto menos o sujeito foge do padrão básico, mais sua lataria se assemelha à minha.

Graças a essa particularidade, quase todos os dias sou confundido ou visto em dezenas de lugares ao mesmo tempo. Quando criança, fui botado por engano no carro pela mãe de um tal João Vítor, na porta do colégio. Também já fui chamado de papai uma meia dúzia de vezes. Ainda hoje, ganho caronas e abraços inesperados. Até cachorros me seguem pelas ruas, iludidos.

Nesse sentido, foram inúmeros os esclarecimentos que já tive que prestar. 

_ Não, não te conheci em um pub londrino. Nunca nem andei de avião, minha filha.
_Não, nunca joguei nas categorias de base do Bragantino. Até fui um promissor lateral direito. Cruzava bem, mas interrompi minha carreira na sexta série.
_Não, não estive em um quiosque gay em Cabo Frio no réveillon de 2010.
_Ah, me conhece de algum lugar? Pode até ser...

Dia desses, um amigo me mandou a foto de um cara igualzinho a mim, com quem fazia um curso em Fortaleza. Aí descobri que até a falha no meu bigode é padronizada.

Mais recentemente, circulou na internet uma foto em que eu, supostamente, tocava contrabaixo em uma banda de rock. Mas quem me conhece sabe que entendo tanto de contrabaixo quanto sobre embreagem de foguete. Ainda assim, amigos íntimos, colegas de todas as gerações e até meu pai veio se queixar por não tê-lo chamado ao show.
E o pior está por vir. Soube que o Glauco está morando atualmente em Belo Horizonte. Coisa boa isso não é. Indício de confusão.

Bom, sem mais delongas, o recado está dado. Se por ventura me flagrarem explodindo um caixa eletrônico, saindo do motel com um travesti ou tirando meleca do nariz, saibam que é enorme a possibilidade de ser obra de outro cara, muito parecido comigo.

Se me virem vomitando no banheiro de um casamento, comercializando drogas, pichando ‘morte aos tecnocratas’ no viaduto; é sério, não fui eu.

Se isso acontecer, minha gente, melhor deixar avisado de uma vez: Foi o Glauco da Economia!

PS.: Bem, na verdade estive mesmo no quiosque gay.
Mas entrei lá por engano. 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Paradigmas do menino Eberclei

O jovem Eberclei nunca havia saído dos limites de uma cidadezinha fuleira do interior de Goiás, quando, aos 17 anos, veio estudar engenharia em Belo Horizonte. 

Achou bem legal a cidade urbanizada. Em sua terra natal, era muito comum caminhar lado a lado com vacas ou galinhas na estrada que levava ao colégio. Achou bacana ver tantas garotas bonitas na faculdade e nas ruas.

Era bem tímido, e desconfiado como todo bom capiau. Não deveria estabelecer, tão cedo, alguma amizade na metrópole. 

Ah, mas das meninas ele realmente gostou. 

O sotaque era bonitinho. E até a futilidade que detectou nas mais patricinhas era, para Eberclei, interessante. A primeira tentativa, porém, de dialogar com uma colega de classe foi um fiasco: apresentou-se, e à primeira reação da menina, ele descobriu que seu nome de batismo era ridículo. “Putz! Sério? Eberclei?”. Decidiu que não iria às calouradas.

E o rapazote passou por algumas aventuras na cidade grande. Havia muita coisa nova a ser assimilada. Pegar o metrô, subir escada rolante, usar cartão de crédito...

Mas de matemática Eberclei entendia! E graças a essa virtude passou em uma seleção para estagiário. O jovial Eberclei ingressou então no staff de uma imponente montadora de automóveis. Na prática, recebeu a atribuição de trazer o cafezinho para os engenheiros.

...

Sem balbuciar, jamais, uma só palavra durante o expediente, Eberclei se esforçava para aprender sobre o ofício do qual pretendia ser detentor dali a alguns anos. Discreto, observava os profissionais na lida diária. Ou melhor, observava a engenheira Eliza.

Um metro e setenta e cinco de altura (dez centímetros a mais do que ele, sem contar o salto). Cabelos negros, lisos e longos até a cintura. Morena, olhos pretos que, à luz, ficavam quase da cor de grafite. Unhas, cílios e brincos impecáveis, mas sem batom. Elegante, esbelta, feminina. Exalava um agradável perfume que sempre trazia uma flor cheirosa à memória de Eberclei. Aparentemente, trinta e dois anos e seis meses de idade – calculava ele. No dedo anelar da mão direita, uma aliança de noiva.

Depois de uma semana convivendo na mesma sala, ela enfim notou a existência do novo estagiário. A voz encantadora, como se fosse uma sereia, quebrou o gelo: “Oi menino, nunca te vi aqui. Qual o seu nome?”.

“Éber.” – respondeu prontamente. Já havia se planejado a respeito.
Eberclei então monitorava cada aspecto referente à chefe que idealizava. O decote sempre discreto nas costas, a escrita canhota, a piscada lenta, sugerindo que seus olhos se ressecavam quando expostos ao ar condicionado. As panturrilhas rigorosamente da mesma espessura. E aquele anel dourado, símbolo maior do iminente compromisso matrimonial, que fazia desmoronar o mundo inteiro sobre a cabeça de Eberclei.

Ao certo, a dama estaria prestes a se casar com um endinheirado homem de negócios, que usa terno e relógio. Ou um jogador de futebol, daqueles que adquirem prestígio e erguem vasto patrimônio ainda jovens.

Tal gavião teria sido o remetente daquele buquê de rosas recebido por sua deusa, de surpresa, em pleno ambiente de trabalho. Era para atendê-lo ao celular que Eliza saía de fininho, sorridente, quando ouvia o aparelho tocar uma canção de Caetano. Que martírio era aquilo!

O estudante solitário passou a ficar obcecado. Sua medíocre rotina se resumia então em investigar o que pudesse sobre aquela mulher. Espionava-a nas redes sociais. Beijava o copo usado por ela, deixado na pia da cantina. Uma vez quase foi surpreendido cheirando o agasalho da mulher, largado sobre a poltrona. Só pensava nela o dia inteiro. A paixão platônica se transformava em uma doença.
Certo dia, Eberclei ficou até as dezoito horas na firma. Havia recentemente largado os cafezinhos, sendo promovido a carimbador de documentos, e o serviço ficou mais pesado. Nessa ocasião, pôde bisbilhotar a rainha de seus sonhos na saída do trampo.

Eliza se despediu de todos, do diretor à faxineira, com a delicadeza que lhe era peculiar. Desceu as escadas apressadamente, parecia que alguém a estava a esperar. Por instinto, o estagiário foi atrás, mesmo ciente de que levaria uma apunhalada no peito se desse de cara com o bonitão. Teria cabelos levemente grisalhos, voz grave, dirigiria um carrão. 

“Desgraçado...”.

Eberclei examinava toda a trajetória, sorrateiramente. Dali a poucos metros, havia, de fato, um belíssimo automóvel preto, com cabine dupla e carroceria, parado. O garoto nem conhecia o nome do modelo. Eliza caminhou para lá, saltitante de saudade. 

"Maldito!".

Nesse momento, um súbito ódio tomou conta da até então inofensiva personalidade do rapaz. Impulsivamente, ele a seguiu. Quem visse a cena ficaria assustado, mas a rua era deserta e já começava a escurecer. Eberclei estava ofegante; o olhar marejado e convicto. Caminhava com passos fortes.

A moça se aproxima do veículo estacionado. O estagiário a persegue, prestes a alcançá-la, com um ar sinistro, animal. As mãos cerradas, empunhando apenas uma caneta do escritório.  

A porta do carona abre devagar e Eliza se joga nos braços do piloto. Eberclei agora chega de mansinho, com bastante cautela.

A musa está de costas. O estagiário observa mais uma vez o decote sensual. Tem raiva, e segura forte a caneta. Já é possível ver quem está ao volante, beijando vorazmente sua donzela protegida.
Na poltrona do motorista, uma lindíssima loira, cabelo até os ombros, usando saia; foi só o que deu para constatar. Eberclei contempla a cena, paralisado. Diante de seus olhos estão duas beldades, usando maquiagem. Nada de gravata, charuto, barba, bigode...

O vento sopra e traz até Eberclei o cheiro bom de xampu feminino. Ele fica pasmo, imóvel. "Mas... como assim?" — questionava sua alma, surpresa.

De um jeito inesperado, a fincada amarga do ciúme anulou-se. Ebreclei, que navegava num turblento oceano de novidades desde que aportara na capital, renovava seus paradigmas naquele exato instante.

"Se não há rivalidade masculina, não há motivos para me sentir derrotado, certo? É assim no reino dos leões, dos búfalos... dos pavões..." — conjecturava o espírito angustiado do rapazinho.

Jogou fora a caneta e regressou calmo, o menino Éber.