Este conto é sobre o fazendeiro José Justo, que de justo não
tinha nada.
Desde a primeira infância, José Justo se acostumou a
trapacear descaradamente. Na brincadeira de esconde-esconde, tapava os próprios
olhos deixando delgada fresta entre os dedos médio e anelar, através da qual
tinha absoluto domínio visual de todo o campo observável. Descortinava assim,
em poucos instantes, os esconderijos dos coleguinhas. Obtinha satisfatório
desempenho no colégio, logrado, invariavelmente, à custa de maquiavélicos
esquemas de cola. José Justo também mentia para a mãe, surrupiava trocados na
caixinha da igreja, furava filas, enganava as namoradinhas, fraudava até exame
de vista.
De pouquinho em pouquinho, José Justo ergueu um império na pequenina
cidadezinha, e toda a sua conquista é devida à malandragem natural que Deus lhe
deu. Sonegou milhares em impostos na comercialização do café cultivado em sua
fazenda. Misturava água aos litros de leite tirados das vacas, antes de
vendê-los. Ludibriava até seus próprios bovinos, mesclando farinha de trigo à
ração dos animais! Dava golpe em velhinho, mendigo, cego ou em quem quer que
fosse. José Justo tornou-se rico e influente no lugarejo. Ficou também famoso
por causa de suas picaretagens. (...)
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Na pequenina cidadezinha também vivia outro cidadão influente.
Era o locutor de rádio Bento Batista; por sua vez, irrefutavelmente íntegro,
admirado, respeitado. Não havia quem não o conhecesse pelo bordão que se
popularizou na região:
_A voz tenra e amiga de todas as manhãs!
Bento Batista era benquisto por todos e por isso foi
convidado a batizar centenas de crianças nascidas na cidade. Solidário,
mantinha, com fundos próprios, uma creche e uma casa de repouso para idosos.
Vivia com recursos básicos e partilhava o restante de seus rendimentos. Doou um
rim e um pedaço de seu próprio fígado a distintos moribundos.
O radialista era um líder, venerado na comunidade. Gozava de
tanto prestígio que dava conselhos ao padre e ao delegado. Fazia visitas à
cadeia e conversava amigavelmente com presidiários perigosos. Da última vez em
que lá esteve, convenceu a autoridade a soltar um tal ladrão chamado Pedro
Furtado. “Ele se regenerou, será homem de bem” – garantiu Bento Batista. E não
é que o rapaz tomou jeito mesmo? Hoje é conhecido carinhosamente como Pedrinho,
e é competente pedreiro.
Por essas e outras, tudo aquilo que o radialista Bento
Batista falava tinha valor de lei por aquelas bandas. (...)
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Mas voltemos ao safado do Zé Justo.
Era ano de eleições municipais, e cismou, o sem-vergonha, de
querer ser o novo prefeito da cidadezinha. A princípio não teria chances, por
conta de sua péssima popularidade.
Acontece que Zé Justo era ardiloso, daria seu jeito de eleger-se.
Sorrateiramente, começou a comprar votos. Dava aos pobres pares de tênis,
óculos escuros, relógios e toda sorte de bugigangas – tudo produto
contrabandeado. Prometia empregos para famílias inteiras, em repartições que
nem sequer existiam. Audacioso, tentou subornar seu adversário único no pleito,
de nome João Machado, humilde lenhador. “Sou pobre, mas não sou corrupto” –
cortou, convicto, Machado. A disputa haveria de ser limpa. (...)
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Quando chegou o mês de outubro, não se falava em outra coisa
na cidadezinha.
“Cara de pau esse Zé! Deviam mandar matar!”, sugeriu Dona
Severa.
“Daria tudo para ver o Zé derrotado e humilhado”, respondeu
sua comadre, Dona Generosa.
“Não cabe a nós condená-lo!” – amenizava Dona Piedade.
“A eleição será correta e tranquila”, desconversava Seu
Pacífico. (...)
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O único mesário, da única sessão eleitoral do município, era
o Seu Albino, um bucólico pastor de ovelhas. Ele ficou branco dos pés à cabeça
quando recebeu, na noite da véspera das eleições, a proposta de Zé Justo: “Um
milhão para multiplicar as cédulas com votos a meu favor”. A oferta era
sedutora demais, não havia como declinar. Seu Albino encheria o bolso de
dinheiro e sumiria no mundo antes do cabo da apuração.
Na manhã seguinte, logo bem cedinho, foram chegando os
votantes da cidadezinha. O Ferreira, cabra gente boa, praticava boca de urna
ostentando bandeirinhas de seu candidato preferido. Feitas em casa, com
santinhos afixados em espetos de pau. Tudo por ali era muito pitoresco.
Antes do meio-dia, já não faltava mais ninguém para votar.
Começou então a contagem.
Estranhamente, foram depositadas cerca de três mil cédulas
na única urna disponível, sendo que a cidadezinha tinha pouco mais de dois mil
eleitores. O Jacinto, rapaz de sensibilidade aguçada, ficou desconfiado. “Sinto
que há alguma coisa errada”, pressentia ele. Mas Jacinto não faria alarde.
Essas eleições seriam favas contadas. Mesmo lançando mão das suas maracutaias,
o cretino do Zé haveria de perder. (...)
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À noitinha, todos os moradores da pequenina cidadezinha
sintonizaram seus radinhos no padrão AM, apreensivos quanto à revelação do
candidato vencedor. E especialmente ansiosos porque isso seria mediado pela voz
gostosa e afável de Bento Batista. Às dezenove em ponto, o queridíssimo e
corretíssimo locutor entrou no ar. O resultado do pleito, que há pouco
consultara, com curiosidade, em um papelzinho timbrado, era para ele assombroso
e trágico. Em nome da imparcialidade jornalística, no entanto, o nobre
radialista foi forçado a engolir sua frustração.
_ Boa noite, ouvintes! Aqui quem vos fala é a voz tenra e
amiga de Bento Batista. Tenho em minhas mãos o saldo da apuração. E trata-se
certamente de uma surpresa para todos. Pela diferença de apenas vinte votos,
foi eleito o candidato José Justo de Jesus. Isso mesmo, podem acreditar: deu Zé
Justo. Deu Zé Justo!
Dona Margarida, que fechava o caixa na sua floricultura, de
repente murchou de desgosto. “Eu ouvi direito? O vagabundo do Zé ganhou? E
nosso amado locutor, por conta disso, avalia que Deus é justo?!”.
_ Isso mesmo, querido ouvinte! O Zé venceu. Por essa,
ninguém esperava. Mas vemos agora que nada é impossível, porque deu Zé Justo.
Deu Zé Justo!
O altifalante do aparelho vociferava e todos se espantavam.
Naquele mesmo instante, um velho criador de pássaros, de nome Ícaro, ouvia à
transmissão radiofônica no interior da chácara onde trabalhava. Estarrecido,
Ícaro disparou pra casa, a fim de repercutir a notícia com a esposa. De tão
apressado, por muito pouco não levantou voo. “Escutou isso, mulher? Como
assim?! O pilantra do Zé vence e nosso adorado locutor atribui isso à justiça
divina?!”.
Bento Batista ainda repetiu mais duas vezes ao microfone,
reafirmando para seus milhares de ouvintes:
_Deu Zé Justo! Deu Zé Justo!
Depois sofreu um piripaque do coração e morreu ali mesmo, ao
vivo.
Ainda com os ouvidos colados a seus aparelhinhos
radiofônicos, e energizados pelo desespero, alguns anciãos, que vadiavam
reunidos na pracinha, correram desembestados até duas esquinas adiante, a fim
de acionar o chaveiro Xavier para que este desaferrolhasse a porta do prédio
que sediava a rádio local.
Feito isso, Dona Socorro, socorrista do posto médico, pôde
então subir, às pressas, as longas escadarias do imóvel, rumo ao estúdio de
transmissão. Mas logo constatou, muito infelizmente, que não seria possível
reanimar o acidentado, já morto. Milhares de espectadores acompanhavam pelo
rádio, em tempo real, o fatídico bafafá que sucedia naquela sala. Doutor
Nascimento, único obstetra do arraial, interrompeu uma operação de parto para
chorar a perda, de joelhos ao chão: “Suas últimas palavras foram de
agradecimento a Deus pelo triunfo do Zé... Que santo homem!”, louvava. (...).
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Naquela noite trágica, todos os munícipes compareceram ao
velório de Bento Batista. Seu Valente era um dos mais abatidos, mas segurava,
corajosamente, o choro. Dona Consolação consolava os presentes; distribuía
lencinhos para que secassem as lágrimas. Enquanto isso, o Hilário fazia
gracinhas para distrair as crianças, que estavam desoladas.
A figura mais lúcida àquela altura era Dona Aparecida, senhorita cuja presença
era sempre muito marcante em quaisquer ambientes. Por sinal, foi ela quem tomou
a palavra, emocionada: “Para honra do finado locutor Bento Batista, é nosso
dever amar e respeitar o novo prefeito José Justo! De certo, Zé Justo fazia jus
à confiança de Bento Batista, como este fez questão de nos demonstrar em seu
derradeiro suspiro de vida!” – chorava a dama.
Tal ponderação tocou a consciência daqueles cidadãos, que se
arrependeram de terem julgado com tamanha crueldade o fazendeiro José Justo.
"Sim! Se era o preferido de Bento Batista, má pessoa não é!",
murmuravam entre si.
Na lápide onde jazeu o corpo do idolatrado radialista Bento
Batista, foi grafada sua última declaração enquanto encarnado: Deus é justo.
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E foi assim que o fazendeiro José Justo teve a reputação
transformada e seguiu nos braços do povo. Ainda que praticasse frequentes
cachorragens como mandatário da cidadezinha, sua imagem pública mantinha-se
inabalada.
“Abençoado seja! Não é sem razão que seu nome é José
Justo!", orgulhavam-se, por ali.
"Ora, temos cá um homem deveras justo; muito justo,
honesto e bom!”, propagavam todos, principalmente o Seu Cícero – bastante
reconhecido nas redondezas como sendo um sujeito sincero.