terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Reflexões do velho tocador solitário

Lá está o velho tocador de trompete. A praça deserta da cidade pequena é o cenário onde ainda restam algumas latas e garrafas vazias espalhadas, e outros lixos. O vento, quando sopra forte, carrega os mais leves: poeira e eventualmente, até, uma nota de dinheiro. E penteia os escassos fios alvos que ainda restam sobre a cabeça do velho tocador.

Os boêmios enfim repousam. Os cachorros de rua, que nada entendem, ainda circulam, vadios, pela praça. A sarjeta deixa exalar o odor dos restos da noite anterior, principalmente o da cerveja velha. A revoada dos pardais, vez em quando, quebra a monotonia. Apenas o Sol expande-se, imponente, castigando a quase absoluta careca do velho tocador de trompete.

Ele não lê partituras, por vezes tropeça em uma ou duas notas antes de alcançar a correta. A melodia de sua única canção é notavelmente mais lenta do que deveria, coisa da melancolia do momento. O solitário animador da cidade deserta, naquele início de tarde, desconhece a real diferença entre seu trompete, o saxofone, a tuba – mas isso é o que menos intriga a consciência do velho tocador.

Mecanicamente a canção flui, por isso o raciocínio do velho faz uma viagem. Ele pensa que o trabalho ocupa toda a sociedade, livrando-a do silêncio. Gera riqueza e ambição, que é a motivação para trabalhar mais. Então é necessário relaxar: faz-se a festa, sua decorrente bagunça e sujeira. Depois volta o silêncio.

Os jovens, ressaquiados e sonolentos, despertam com a canção vagarosamente compassada, que parecendo vir de longe, repete-se: "Adeus... ano velho. Feliz... Ano Novo. Que tudo se realize...". Mas o velho tocador de trompete não espera que alguém o ouça. Apenas sopra, despretensioso, o instrumento do qual aprendera sozinho a extrair harmonia.

A mensagem de esperança em dias melhores surge espontânea varrendo a porcaria e a bagunça da praça deserta.

Amigo imaginárioApós o fim de um Carnaval
em Senhora de Oliveira, MG, esse velho
me apareceu pela primeira vez. Ele tocava melancólico:
"Arlecrim está chorando / por amor a Colombina...".

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Essa coisa louca sem explicação


Eberclei tem absoluta convicção de que o mundo é irreal. Algo virtual, uma fantasia.

Não descarta a possibilidade de que haja uma versão concreta do que entendemos como a vida. Pode ser mesmo um mundo paralelo, de onde o pessoal que existe de verdade nos acompanha. Talvez sejamos apenas uma experiência científica, conduzida por um povo evoluído.

E esse pessoal já está lá, de frente a um observatório, há muito antes do que possamos imaginar. Desde antes de começar a nossa história. Aliás, quando foi mesmo o ponto de partida? Teria sido no início da escritura da Bíblia? Ou no dia em que revelou-se a primeira fotografia? – esta, a pioneira evidência infalível de que o passado houve. Ou foi quando alguém ateou fogo em um rojão, que explodiu e deu origem ao universo? Nesse caso, quem confeccionou a bomba? Estranho, não?

Assim, é óbvio que nem o tempo existe.

E esse papo de que só se vive uma vez? Balela, claro. A bem da verdade, cada instante pode ser refeito, repetido, testado, sem que nos lembremos de nada. Quando não há mais saída, um mestre aparece, de um portal cor-de-rosa, e nos permite voltar no tempo. Você já foi um mendigo, até que cansou-se e voltou a fita. Queria ver como repercutiria se tivesse feito algo diferente lá no passado. Recomeçou de criança. O tal efeito borboleta. Acabou tomando outro rumo e viveu como um magnata. Mas depois de uns anos voltou, reparou aqui, acolá, seguiu e adiante regressou. É sem fim. Alguém aí se lembra de já ter morrido?

Pois então.

Outra coisa interessante dessa experiência que chamamos de vida: nem todas as pessoas, de fato, existem. Sabe aquele rapaz bonzinho que te deu uma carona e nunca mais apareceu? Aquele velhote sentado numa esquina que te informou a direção de tal bairro? A vendedora de água? Meu caro, botaram essa gente de mentira no seu caminho, puro improviso, pra quebrar um galho. Não passam de figurantes. 

Ah, o seu ator favorito de Hollywood? O inventor da lâmpada elétrica? São fakes, criaturas ideais e fictícias. Pense bem: é impossível inventar uma lâmpada elétrica! E ninguém é tão maravilhoso e sortudo que possa ser astro de vários filmes milionários! Você, por acaso, conhece algum pessoalmente? Conhece Pelé? Lady Diana? Dalai Lama?

Tolinho...

Certo dia, Eberclei sonhou que era um pedacinho de vácuo. Assim possuído, não haveria impedimentos para que explorasse a imensidão do universo. Então ele foi subindo, superou a atmosfera, não congelou-se nem precisou de oxigênio. Foi até o Sol, sem evaporar-se pelo caminho. Atravessou a galáxia e desconfiou que bem ao longe haveria outras sociedades como a da Terra. Só desconfiou. A viagem não teve fim, mas muitas mutações no ambiente. Ebercelei não encontrou a linha de chegada. E mesmo que a encontrasse, o que viria depois dela, meu Deus?!

Acordou angustiado, quase desesperado, e aí ele teve a mais plena certeza: não há a mínima possibilidade de alguma coisa dessa vida ser de verdade!

Em seguida, ele calçou um par de chinelos, pôs um bonezinho e foi pro boteco mais próximo, onde encheu a cara de cerveja, até cair a noite:
"— Foda-se."

O outro lado: Só pode haver uma explicação
divina para os mistérios dessa vida louca!  
Este é o Blog do Cano.