quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O isolador de alcaloides


Logo pela manhã, o alarde foi dado: —Douglas isolou três alcaloides!

E você não imagina a danada da confusão que isso deu. Ainda mais porque o Douglas estava desaparecido. Desde a terça-feira, ninguém tinha notícias dele. E agora essa novidade meio sem pé nem cabeça.

Seu amigo, o Marcos, morava com ele. Foi o primeiro a se angustiar: —Alô, dona Selma. Tô ligando porque ando preocupado com o Douglas. Desde a terça-feira que ninguém sabe do seu paradeiro. A última coisa que se soube dele... é que tinha isolado três alcaloides. Fato é que escafedeu-se há dias!

—Ai meu Deuuus! Eu sempre falei pro meu menino... não mexe com essas coisas... não anda com má companhia... Ai meu Deuuus...

O Douglas nem é mais menino, como pressupõe sua mãe. Já passou dos trinta e poucos anos.

"Bom, melhor avisar à noiva do Douglas", atinou Marcos. O Douglas não tem família em Belo Horizonte. Sua noiva mora no norte de Minas. —O QUÊ??? Ele isolou três alcaloides??? Nossa... conheço o Douglas há sete anos... ele nunca tinha feito isso...

O dia foi passando e nada do Douglas dar as caras.

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Sabia-se que o Matheus era amigo antigo do Douglas — que como eu já disse, não tinha familiares na capital. —Sei dele não... Nem tava sabendo que mexia com alcaloides...

Reitero que tudo isso foi o Marcos (que mora com o Douglas) investigando. Ao averiguar aqui e ali, Marcos soube que a galera do futebol abriu várias cervejas depois da pelada, para comemorar o caso do isolamento dos tais três alcaloides. Mas por lá também ninguém tinha pista de onde estaria o Douglas.

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Marcos decidiu então acionar outros amigos em comum. Recorreu ao Willian, mas foi em vão: —Alcaloides, moço? Não manjo nada dessas paradas de eletricidade.

Então passou por ali o Renan: —O Douglão isolou os alcaloides? Alcaloides, que maneiro..., forjou, ele, uma reflexão.

A polêmica logo chegou aos ouvidos do Reginaldo, mas este também não entendia bulhufas de alcaloides, nem de nenhum outro tema relacionado à física quântica. Assim mesmo, questionou: —TRÊÊS???, fingindo estar espantado quanto ao expressivo número de alcaloides envolvidos em tal contexto de isolamento.

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A coisa começou a apimentar quando o Ulisses tomou parte. —Que história é essa de isolar? Não podemos isolar ninguém! Pelo contrário, temos de acolher!

E o Ulisses era primo do vice-prefeito, que também meteu seu bedelho: emitiu carta oficial de repúdio ao isolamento de minorias, em nome do partido. Num piscar de olhos, o ofício se alastrou por toda a imprensa local. E daí despertou a atenção do pessoal dos direitos humanos. Ativistas de todas as causas se manifestaram nas redes sociais: os comunistas, os anarquistas, os feministas, os machistas, os veganos, os direitistas e esquerdistas. O movimento trabalhista também figurou em evidência. Salvo engano, os alcaloides, em algum momento desse alvoroço, foram confundidos com os debiloides. Não sei se entendi bem, mas parece que os defensores do uso de células-tronco, que andavam sumidos, também teriam encontrado uma brecha para voltar à tona. O povo foi às ruas na sexta-feira, após o expediente, ainda que sem uma demanda consensual pela qual protestar. Queimaram um boneco inflável que replicava o Douglão. Houve vandalismo.

Até ouvi dizer que teve mais um monte de repercussão do outro lado da cidade, mas não sei ao certo.

Depois chegou o fim de semana, e os erros de arbitragem do campeonato brasileiro voltaram a prevalecer nas rodas de conversa, comprovando que a memória dos cidadãos é mesmo curta.

Como é possível presumir, ninguém nessa história sabe lá o que são alcaloides ou sobre a viabilidade de isolá-los. A mãe do Douglas não sabe, tampouco a noiva, nem sequer os amigos, muito menos a sociedade. Eu também não faço ideia.

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Pensei em perguntar pro próprio Douglas. O problema é que ele até agora não reapareceu.

terça-feira, 23 de junho de 2015

José Justo, o abençoado

Este conto é sobre o fazendeiro José Justo, que de justo não tinha nada.

Desde a primeira infância, José Justo se acostumou a trapacear descaradamente. Na brincadeira de esconde-esconde, tapava os próprios olhos deixando delgada fresta entre os dedos médio e anelar, através da qual tinha absoluto domínio visual de todo o campo observável. Descortinava assim, em poucos instantes, os esconderijos dos coleguinhas. Obtinha satisfatório desempenho no colégio, logrado, invariavelmente, à custa de maquiavélicos esquemas de cola. José Justo também mentia para a mãe, surrupiava trocados na caixinha da igreja, furava filas, enganava as namoradinhas, fraudava até exame de vista.

De pouquinho em pouquinho, José Justo ergueu um império na pequenina cidadezinha, e toda a sua conquista é devida à malandragem natural que Deus lhe deu. Sonegou milhares em impostos na comercialização do café cultivado em sua fazenda. Misturava água aos litros de leite tirados das vacas, antes de vendê-los. Ludibriava até seus próprios bovinos, mesclando farinha de trigo à ração dos animais! Dava golpe em velhinho, mendigo, cego ou em quem quer que fosse. José Justo tornou-se rico e influente no lugarejo. Ficou também famoso por causa de suas picaretagens. (...)
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Na pequenina cidadezinha também vivia outro cidadão influente. Era o locutor de rádio Bento Batista; por sua vez, irrefutavelmente íntegro, admirado, respeitado. Não havia quem não o conhecesse pelo bordão que se popularizou na região:

_A voz tenra e amiga de todas as manhãs!

Bento Batista era benquisto por todos e por isso foi convidado a batizar centenas de crianças nascidas na cidade. Solidário, mantinha, com fundos próprios, uma creche e uma casa de repouso para idosos. Vivia com recursos básicos e partilhava o restante de seus rendimentos. Doou um rim e um pedaço de seu próprio fígado a distintos moribundos.

O radialista era um líder, venerado na comunidade. Gozava de tanto prestígio que dava conselhos ao padre e ao delegado. Fazia visitas à cadeia e conversava amigavelmente com presidiários perigosos. Da última vez em que lá esteve, convenceu a autoridade a soltar um tal ladrão chamado Pedro Furtado. “Ele se regenerou, será homem de bem” – garantiu Bento Batista. E não é que o rapaz tomou jeito mesmo? Hoje é conhecido carinhosamente como Pedrinho, e é competente pedreiro.

Por essas e outras, tudo aquilo que o radialista Bento Batista falava tinha valor de lei por aquelas bandas. (...)

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Mas voltemos ao safado do Zé Justo.

Era ano de eleições municipais, e cismou, o sem-vergonha, de querer ser o novo prefeito da cidadezinha. A princípio não teria chances, por conta de sua péssima popularidade.

Acontece que Zé Justo era ardiloso, daria seu jeito de eleger-se. Sorrateiramente, começou a comprar votos. Dava aos pobres pares de tênis, óculos escuros, relógios e toda sorte de bugigangas – tudo produto contrabandeado. Prometia empregos para famílias inteiras, em repartições que nem sequer existiam. Audacioso, tentou subornar seu adversário único no pleito, de nome João Machado, humilde lenhador. “Sou pobre, mas não sou corrupto” – cortou, convicto, Machado. A disputa haveria de ser limpa. (...)



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Quando chegou o mês de outubro, não se falava em outra coisa na cidadezinha.

“Cara de pau esse Zé! Deviam mandar matar!”, sugeriu Dona Severa.

“Daria tudo para ver o Zé derrotado e humilhado”, respondeu sua comadre, Dona Generosa.

“Não cabe a nós condená-lo!” – amenizava Dona Piedade.

“A eleição será correta e tranquila”, desconversava Seu Pacífico. (...)



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O único mesário, da única sessão eleitoral do município, era o Seu Albino, um bucólico pastor de ovelhas. Ele ficou branco dos pés à cabeça quando recebeu, na noite da véspera das eleições, a proposta de Zé Justo: “Um milhão para multiplicar as cédulas com votos a meu favor”. A oferta era sedutora demais, não havia como declinar. Seu Albino encheria o bolso de dinheiro e sumiria no mundo antes do cabo da apuração.

Na manhã seguinte, logo bem cedinho, foram chegando os votantes da cidadezinha. O Ferreira, cabra gente boa, praticava boca de urna ostentando bandeirinhas de seu candidato preferido. Feitas em casa, com santinhos afixados em espetos de pau. Tudo por ali era muito pitoresco.

Antes do meio-dia, já não faltava mais ninguém para votar. Começou então a contagem.

Estranhamente, foram depositadas cerca de três mil cédulas na única urna disponível, sendo que a cidadezinha tinha pouco mais de dois mil eleitores. O Jacinto, rapaz de sensibilidade aguçada, ficou desconfiado. “Sinto que há alguma coisa errada”, pressentia ele. Mas Jacinto não faria alarde. Essas eleições seriam favas contadas. Mesmo lançando mão das suas maracutaias, o cretino do Zé haveria de perder. (...)

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À noitinha, todos os moradores da pequenina cidadezinha sintonizaram seus radinhos no padrão AM, apreensivos quanto à revelação do candidato vencedor. E especialmente ansiosos porque isso seria mediado pela voz gostosa e afável de Bento Batista. Às dezenove em ponto, o queridíssimo e corretíssimo locutor entrou no ar. O resultado do pleito, que há pouco consultara, com curiosidade, em um papelzinho timbrado, era para ele assombroso e trágico. Em nome da imparcialidade jornalística, no entanto, o nobre radialista foi forçado a engolir sua frustração.

_ Boa noite, ouvintes! Aqui quem vos fala é a voz tenra e amiga de Bento Batista. Tenho em minhas mãos o saldo da apuração. E trata-se certamente de uma surpresa para todos. Pela diferença de apenas vinte votos, foi eleito o candidato José Justo de Jesus. Isso mesmo, podem acreditar: deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

Dona Margarida, que fechava o caixa na sua floricultura, de repente murchou de desgosto. “Eu ouvi direito? O vagabundo do Zé ganhou? E nosso amado locutor, por conta disso, avalia que Deus é justo?!”.

_ Isso mesmo, querido ouvinte! O Zé venceu. Por essa, ninguém esperava. Mas vemos agora que nada é impossível, porque deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

O altifalante do aparelho vociferava e todos se espantavam. Naquele mesmo instante, um velho criador de pássaros, de nome Ícaro, ouvia à transmissão radiofônica no interior da chácara onde trabalhava. Estarrecido, Ícaro disparou pra casa, a fim de repercutir a notícia com a esposa. De tão apressado, por muito pouco não levantou voo. “Escutou isso, mulher? Como assim?! O pilantra do Zé vence e nosso adorado locutor atribui isso à justiça divina?!”.

Bento Batista ainda repetiu mais duas vezes ao microfone, reafirmando para seus milhares de ouvintes:

_Deu Zé Justo! Deu Zé Justo!

Depois sofreu um piripaque do coração e morreu ali mesmo, ao vivo.

Ainda com os ouvidos colados a seus aparelhinhos radiofônicos, e energizados pelo desespero, alguns anciãos, que vadiavam reunidos na pracinha, correram desembestados até duas esquinas adiante, a fim de acionar o chaveiro Xavier para que este desaferrolhasse a porta do prédio que sediava a rádio local.

Feito isso, Dona Socorro, socorrista do posto médico, pôde então subir, às pressas, as longas escadarias do imóvel, rumo ao estúdio de transmissão. Mas logo constatou, muito infelizmente, que não seria possível reanimar o acidentado, já morto. Milhares de espectadores acompanhavam pelo rádio, em tempo real, o fatídico bafafá que sucedia naquela sala. Doutor Nascimento, único obstetra do arraial, interrompeu uma operação de parto para chorar a perda, de joelhos ao chão: “Suas últimas palavras foram de agradecimento a Deus pelo triunfo do Zé... Que santo homem!”, louvava. (...).

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Naquela noite trágica, todos os munícipes compareceram ao velório de Bento Batista. Seu Valente era um dos mais abatidos, mas segurava, corajosamente, o choro. Dona Consolação consolava os presentes; distribuía lencinhos para que secassem as lágrimas. Enquanto isso, o Hilário fazia gracinhas para distrair as crianças, que estavam desoladas.

A figura mais lúcida àquela altura era Dona Aparecida, senhorita cuja presença era sempre muito marcante em quaisquer ambientes. Por sinal, foi ela quem tomou a palavra, emocionada: “Para honra do finado locutor Bento Batista, é nosso dever amar e respeitar o novo prefeito José Justo! De certo, Zé Justo fazia jus à confiança de Bento Batista, como este fez questão de nos demonstrar em seu derradeiro suspiro de vida!” – chorava a dama.

Tal ponderação tocou a consciência daqueles cidadãos, que se arrependeram de terem julgado com tamanha crueldade o fazendeiro José Justo. "Sim! Se era o preferido de Bento Batista, má pessoa não é!", murmuravam entre si.

Na lápide onde jazeu o corpo do idolatrado radialista Bento Batista, foi grafada sua última declaração enquanto encarnado: Deus é justo. (...)


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E foi assim que o fazendeiro José Justo teve a reputação transformada e seguiu nos braços do povo. Ainda que praticasse frequentes cachorragens como mandatário da cidadezinha, sua imagem pública mantinha-se inabalada.

“Abençoado seja! Não é sem razão que seu nome é José Justo!", orgulhavam-se, por ali. 

"Ora, temos cá um homem deveras justo; muito justo, honesto e bom!”, propagavam todos, principalmente o Seu Cícero – bastante reconhecido nas redondezas como sendo um sujeito sincero. 


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O gueto

Vez por outra, faço minhas incursões de retorno ao gueto. Ou melhor, tento fazer isso.

No gueto há muita gente, pouquíssimos com mais do que vinte e três anos de idade. Ali impera a euforia e a liberdade. A noite parece não ter hora para acabar e a pessoa pode ser ela mesma, no gueto. Pode ser quem quiser. E dinheiro nem é importante.

Ali impera o frescor de personalidade. Os assuntos são triviais, as paixões efêmeras. O gueto me faz recordar, com nostalgia, de quando eu pouco me importava com o futuro e com os problemas.

Eu fico só observando tudo. E imaginando onde é que eu me posicionaria ali naquele gueto, caso a ele fosse compatível. Saudosista, brinco de identificar, naqueles rostos eloquentes, minha antiga cambada. Juro que a gente ganhava dessa galera, de hoje em dia.

Eu poderia ser aquele doidinho ali, de barba, cara de avoado. Mas como sou compenetrado e trabalhador, fico só de longe observando tudo.

Vejo a dupla de meninas, que é uma qualquer dupla de meninas até atravessarem a avenida. À medida que se aproximam do gueto, elas se aprochegam entre si. Já no núcleo do gueto, tascam um beijo na boca, meio sem propósito e meio sem nexo.

Em outros tempos, a gente, marmanjos, parava espantado para assistir a um beijo de mulher com mulher. Hoje, a naturalidade arrefece. É como a nota de cem que não impressiona o milionário. Ou como a morte que não choca o combatente de guerra.

Sozinho, goleando a terceira cerveja, fico meio que lamentando por causa dessa inevitável maturidade. Pareço inteligente quando falo com as meninas. A molecagem estampada na minha cara.

O que eu queria mesmo era poder voltar no tempo. "Se não posso voltar no tempo, também não posso voltar ao gueto", determino.

Convicto, vou ao banheiro urinar a quarta e derradeira garrafa. Para depois, aliviado então, pegar o portal de regresso à rotina de IPTU atrasado, promoção no trabalho, multa de trânsito e vontade de casar.

Já vou-me saindo de fininho, sem me despedir dos jovens desconhecidos. É quando ouço balbuciarem a meu respeito, alguns passos atrás: “Ah lá, o doidinho de barba, cara de avoado. Malucão, mijou de porta aberta...”.

Ham... quando esqueço de fechar a porta para mijar sinto que ainda sou um pouquinho malucão.