terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os três filhos de Dona Piedade


Pesando pesadíssimos seis quilogramas, nasceu Janjão do ventre de Dona Piedade. E o rebento nasceu independente; digo isso porque cortou ele mesmo, de próprio punho, o cordão umbilical que o ligava ao organismo materno. Aos dois anos de idade, Janjão não permitia ser carregado no colo por ninguém: ia e vinha sozinho. Aos quatro, era ele quem levava e conduzia de volta os colegas da escolinha. Durante toda sua infância, Janjão capitaneou as porradarias que mobilizavam os moleques da vizinhança, e era também o responsável por selar a paz no recinto, se lhe conviesse. No início da adolescência, determinou que não frequentaria mais o colégio, e não havia quem fosse capaz de fazer o Janjão mudar de ideia. Nem mesmo a Dona Piedade.

Janjão cuidou do irmão Mário Vítor, dez anos mais moço, como seu guru, guia e mentor. Monitorava sua alimentação e seus estudos, fazendo as vezes da tão atarefada viúva Dona Piedade, que labutava como faxineira para sustentar as crias. Diariamente, o primogênito conduzia o irmãozinho nas costas para todos os compromissos rotineiros; isso durou alguns anos. Depois de um tempo, Janjão passou a recrutar meninas para que o pimpolho Mário Vítor namorasse. Fazia tudo e mais um pouco para o êxito do guri.

E o menino Mário Vítor foi um investimento que vingou sobremaneira! Aonde fosse, era destaque por sua inteligência e elegância. O orgulho do mano mais velho. De tão mimado toda vida, Mário Vítor tornou-se meio esnobe, mas não deixou de ser sucesso absoluto, verdadeiro fenômeno: ora ganhava concurso de redação, ora de beleza. Ora brilhava em olimpíada de Matemática ou então arrebentava como artilheiro no futebol.

Formavam uma dupla deveras sublime, o prodígio Mário Vítor e o grandalhão Janjão — sempre à sua escolta.

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O convívio no seio da família, que era bom, melhor ficou quando decidiram adotar o bebê Zezinho, que alguma alma largara na porta daquele lar, dormindo dentro de uma cesta de pão. Zezinho trouxe brilho incomum aos olhos dos dois irmãos. Janjão tinha dezessete anos, mas de tão maduro, grandão e barbudo, poderia ter trinta e cinco ou mais. Já o bonitinho Mário Vítor, a essa altura, era campeão em torneios de caratê, também tocava violão perfeitamente, e cantava bem, o danado. Uma vez que os mais velhos, cada um com sua particularidade, sempre gozassem de certo respaldo na cidadezinha de só cinco mil habitantes, Zezinho cresceria despertando expectativas e sendo o centro das atenções por ali. Não dava sinais de que seria forte e durão como Janjão, tampouco genial e prepotente como Mário Vítor. Zezinho aflorou fascinantemente carismático e se dava bem com todo mundo.

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Quando Dona Piedade bateu as botas, a sobrevida financeira dos moçoilos ficou seriamente comprometida. Os bicos que Janjão fazia descarregando caminhões de mudança não seriam suficientes para garantir o pão de cada dia.

O grandalhão, ascendido de vez à chefia da família, decidiu então que abriria um negócio que lhes rendesse algum capital. Mas o que poderia fazer o cabra, que mal havia terminado a quinta série do colégio? Haveria de ser tiro certeiro, pois a velha Piedade lhe deixara somente uma merrequinha de nada para investir. Precisava de algo inovador e infalível... Pensou, pensou... Eureca! uma funerária. Não havia na cidade estabelecimento dessa natureza. Os defuntos, até então, tinham de ser velados e sepultados em outra localidade, distante 80 km.

E como morria gente na cidadezinha! Não havia água tratada, muito menos coleta de lixo; tampouco médico, nem farmácia. Nem padre e igreja tinha lá, para o caso daqueles salvos pela fé. Por isso, todo dia morria um infeliz.

Assim, em curto tempo, os irmãos ficaram ricos. E bombou na cidadezinha o cemitério que Janjão ergueu no quintal de casa. Trabalhava feito um burro e ganhava dinheiro de noite e de dia. Buscava e carregava o corpo do indivíduo morto; registrava o óbito de acordo com a lei; embalsamava, maquiava e vestia com pompa o falecido; conduzia o cortejo fúnebre; ornamentava a urna do cadáver. Em troca de um honorário extra, chorava durante o triste momento do sepultamento.

Foi assim que os três irmãos tiraram o pé da lama. A faculdade de Mário Vítor, irmão do meio, e sua estadia na capital, assim como a criação do pequenino Zezinho, foram bancadas graças ao bem-sucedido empreendimento de Janjão. Aquela família viveu tempos de paz e prosperidade. Os três irmãos eram felizes e se amavam demais!

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Depois de alguns anos estudando na cidade grande, Mário Vítor regressou à terrinha onde tinha suas raízes. E lá aportou com status de celebridade. Tornou-se o primeiro e único médico do povoado. Era tão dedicado à profissão que nem tirava férias.

Os serviços do doutor Mário Vítor eram requisitados a todo instante, pois, de tão precários os ambientes da cidadezinha, sua população vivia sempre a perigo. O médico fazia nascer e salvava os bebês prematuros e desnutridos, curava as crianças com vermes e queimaduras, medicava os doloridos, dava esperanças aos anciãos esclerosados, reabilitava até os aleijados. Mário Vítor sagrou-se adorado por todos os cidadãos. E ficou milionário.

Durante quase uma década inteira, ninguém mais morreu por aquelas bandas.

Como todo mundo, em vez de morrer, vivia e vivia mais, os serviços prestados por Janjão da Funerária ficaram paralisados e o homem foi à falência. Teve de vender tudo o que tinha. Em seus caixões encalhados, multiplicaram-se teias de aranha. As flores que cultivava para os velórios murcharam. Janjão sucumbiu em profunda depressão e odiou o irmão com todas as suas forças. Ingrato! Maldito! Era Mário o culpado de toda a desgraça! Revoltado e arruinado, Janjão foi morar num abrigo público.

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Os anos seguiram e Zezinho, o mais novo, na luxuosa mansão do Doutor Mário, desenvolveu-se em berço de ouro, com tudo o que havia de bom e melhor. Apesar de ricos, os dois irmãos jamais arredariam o pé da cidadezinha tão estimada. O caçula, cidadão reconhecidamente gente-boa, envolveu-se naturalmente com ações filantrópicas e defesa de causas diversas em favor dos oprimidos. Ele descobriu-se, pois, vocacionado para a carreira política.

Calhou que, aos vinte e um anos de idade, Zezinho foi eleito o mais jovem prefeito da história de todo o estado. Ele não tinha cursado faculdade, não falava inglês, mas era muito bem relacionado. Aliás, venceu o pleito por unanimidade de votos entre os eleitores, algo nunca antes imaginado na democracia brasileira. Para alcançar tal façanha, tirou proveito, inclusive, da popularidade outrora conquistada pelos irmãos mais velhos.

E Zezinho, bem intencionado que só ele, determinou que faria de seu governo um primor de integridade e eficiência. Aconselhou-se com professores renomados, economistas respeitados e gestores experientes. Passava noites em claro estudando as alternativas mais racionais para aplicar os recursos da cidade. E foi dessa forma que o filho mais moço de Dona Piedade também vivenciou o sucesso em sua plenitude. A fama do excelente mandatário espalhou-se rapidamente.

A cidade enfim conheceu o progresso e a urbanização. A criminalidade deu lugar ao índice de 100% de alfabetização. O povo passou a contar com orientação de sanitaristas e nutricionistas. Exterminaram-se as pestes. Erradicaram-se os vírus. Promoveu-se a vacinação. O direito aos medicamentos gratuitos foi assegurado a todos.

Durante uma década, ninguém mais ficou doente naquele lugar. Nem sequer um resfriado acometeu tal sociedade perfeita e feliz. Tampouco ocorreu uma briga com vítimas, acidente de trabalho ou auto-envenenamento de gente angustiada. Situação mais saudável não havia. Zezinho foi reeleito duas vezes por aclamação, sem votação nem nada.

(...)

Só quem não gostou nada disso foi o Doutor Mário Vítor, cujo salário costumava ser custeado com quase toda a arrecadação municipal. Eliminadas as doenças e demais flagelos, ele teve seus serviços dispensados. Ficou por um tempo entediado, contexto que logo evoluiu para gravíssimo estado depressivo. Envolveu-se com drogas e gastou a maior parte da sua fortuna com os vícios. Após uma noite de esbórnia, acordou com o abdômen cortado e costurado; subtraíram seu rim ou outro qualquer órgão vital. Mário enlouqueceu, até tentou se matar. Dizem que foi visto pela última vez vadiando, ao relento, feito um doido pela rua.

Já o Janjão da Funerária hoje está esquecido e debilitado num asilo. Nunca mais se recuperou das desilusões sofridas. Não anda, não fala, não reconhece ninguém nem se recorda de coisa alguma. Zezinho, por sua vez, fica sozinho e escondido dentro de casa o dia inteirinho. Vive com pânico porque sofreu vários atentados nos últimos meses, motivados por perseguição de opositores políticos. Toma remédios psiquiátricos fortíssimos e quase não tem mais lucidez. Renunciou à vida política e também à social. Ameaçado de morte todos os dias, sabe-se lá por quem, nem abre as janelas, de tão amedrontado.

Os três filhos de Dona Piedade poderiam constituir uma família feliz eternamente. Digamos que até começaram bem, mas por causa dos acontecimentos que sucederam, nem podem mais olhar um na cara do outro.

Como se diz por aí: a vida é feita de escolhas. Se tivessem optado por ser apenas vagabundos, as coisas terminariam diferentes...