sábado, 18 de agosto de 2012

Sábios anciãos

Ontem, passando em frente a um centro universitário, deparei-me com dezenas de jovens embriagados. Havia ocorrido, desde a hora do almoço, uma recepção de calouros, daquelas que nunca terminam. Então era início de noite e, num bairro nobre de Belo Horizonte, rapazes e moças ainda falavam insanidades, beijavam-se ou deixavam no solo generosas poças de vômito. Refleti: “Esses jovens não sabem nada da vida”.

Por sinal, os únicos que detêm a real sapiência sobre a vida – eu seguia matutando – são os velhos. Passamos quase a vida toda sem saber nada da vida, e não nos damos conta disso. Mas felizmente o melhor está por vir: todos seremos um dia velhos e sábios! Exceto, claro, aqueles que morrerem antes de chegar lá.

Tenho uma irmã de cinco anos de idade que não sabe nada de nada. Ela seleciona alguns pretendentes a namoradinho, mas anda enfrentando certas barreiras à paixão: “Gosto do Gabriel, mas ele não serve para namorar... colore tudo rabiscado!”. Rebecca é, pois, ingênua. Tem medo de ficar sozinha em casa, acredita na existência do Papai Noel, não consegue compreender por que chicletes e guloseimas em excesso fazem mal à saúde. Definitivamente, não tem ciência alguma das coisas.
Já os adolescentes pensam que conhecem da vida. Mas, para esses tapados, piercings, penteados escrotos ou notas altas no simulado do pré-vestibular constituem importante capital social. Adolescentes choram por amores que duram uma semana, xingam a própria mãe, fogem de casa. É a idade mais burra, que felizmente dura pouco.

Então chega a juventude, outra época de que a inteligência passa longe. Jovens se alcoolizam, ficam fora de si e são facilmente roubados por ladrões jovens. Estes últimos são também imbecis: cometem crimes e perdem a juventude atrás das grades. Jovens são realmente idiotas, pois engravidam as namoradas, sem a mínima maturidade. Jovens tomam anabolizantes. Há jovens tão tolos que se suicidam!...

Bem, uma vez que cheguei aos vinte e sete, não me enquadro mais entre os jovens. Sou, portanto, um homem feito! Com barba na cara, emprego fixo e alguns fios de cabelo branco. Contudo, admito que também me acomete a absoluta falta de juízo. Não sei se invisto hoje em algo que assegure meu conforto no futuro, ou em viver intensamente enquanto ainda gozo de implacável saúde. Não sei se me caso, se compro um tênis de futsal. Sou mesmo um incapaz.

Daqui a alguns anos serei um coroa, e continuarei sendo um perfeito estúpido. Afinal, os coroas também não sabem nada da vida. Destroem a própria saúde para se encher de dinheiro; depois despendem fortunas em tratamentos de saúde. Há coroas que perdem o respeito da família por causa de uma gostosa com idade para ser sua neta. Há coroas envolvidos no esquema do Mensalão. Há solteirões coroas infelizes. Há inúmeros coroas chatos que são traídos por suas esposas coroas.

Por isso eu digo: quem sabe das coisas, de verdade, são somente os anciãos! Ah, esses sim, podem dizer que são sábios, sabidos, experientes...

Eu não sei dizer do que eles sabem... só sei que os velhos é que sabem das coisas!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A lógica dos insetos

"Fiquei ligeiramente fascinado ao contemplar a singela pétala de rosa a se movimentar. Com imponente elegância, aquele pedacinho da natureza flutuava lenta e uniformemente sobre a invencível membrana d’água. Quão delicada era aquela pele vegetal! O tom vermelho intenso, vivaz, exuberante. Quando então detectei o rastro prateado refletido pela solitária gota no ventre da flor perfumada, aí entendi a costumeira associação que se faz da rosa vermelha à paixão. Entendi também outras coisas..."


...era mais ou menos isso o que assolava meu imaginário durante aquela pasmaceira. Afinal, carecia de alguma ocupação enquanto lamentava pelo meu frustrado investimento de meio de semana.

Comecemos do início:

Em um desses sites de compras coletivas, acabei sendo fisgado por uma promoção. Tratava-se de uma massagem relaxante de nome bizarro, com não sei o quê de reflexologia podal. Se não me engano, mencionava uma tal máscara, óleo de sei lá o quê, ofurô com pétalas de rosas e ervas aromáticas; e ainda um lanche. O valor original do pacote, conforme a oferta, seria 700 reais, mas estava saindo por irrisórios 59. Eram tentadores 92% de desconto.

“_ Caralha, imperdível!” – adquiri impulsivamente.
Cheguei ao local e fui recebido por uma senhorita na sala de massagem. Imaginei que o ambiente deveria ser escurinho, mas uma irritante fresta na cortina atingia em cheio minha tranquilidade. Havia uns balões coloridos estranhos no teto e uma música deprimente misturava-se aos ruídos urbanos que vinham do lado de fora. A mulher solicitou que eu me deitasse, de sunguinha.

“_ Ao aspirar, visualize a cor verde, que remete à tranquilidade. Ao respirar, mentalize o lilás, que é a cor do bem-estar”, orientou-me, com voz de motel, antes de iniciar a massagem. “Seria alguma pegadinha?”, pensei enquanto corria os olhos procurando por uma câmera escondida.

Tá bem, admito que até cheguei a tentar a parte verde.

Minha tarefa seria, então, relaxar completamente. Deitado de bruços, sugeria-se encaixar a face num buraco na extremidade da cama, com vista para o chão. A princípio, parecia um mecanismo maneiro. Mas logo percebi que a posição pressionava o pomo-de-adão (o osso do gogó) contra a cama, a ponto de me deixar desesperado.

Permaneci durante mais de meia hora ali, sufocado, sentindo o sangue se concentrar na minha cabeça, que a essa altura estava prestes a explodir. Até que não suportei mais e pedi para virar o rosto de lado, quebrando o protocolo da parada. Caiu a ficha: “_ Humm... essa é uma clínica para mulheres, que, normalmente, não têm pomo-de-adão desenvolvido”.

A massagem durou mais alguns minutos. Por vezes, a dona apertava minha bunda, o que me deixava um pouco constrangido, mas não a ponto de me manifestar a respeito. Dado momento, sou orientado a virar-me de barriga para cima. A massagista então resolve besuntar minha cara com uma espécie duma meleca, o que não foi nada gostoso. “_Essa é a máscara, ok?” – esclareceu. Em seguida, deu umas pegadas na sola do meu pé. Concluí imediatamente que se tratava da tal coisa ‘podal’ prometida no anúncio do serviço.
No desfecho da sessão, a profissional indaga: “_ E aí, gostou?”. Limitei-me a responder: “_Aaaaa”.

Mas vejam bem. Não foi aquele ‘Ahhhh...’ que a plateia do Programa do Jô profere quando termina uma entrevista empolgante. Tampouco o ‘Ah!’ refrescante das antigas propagandas do Kolynos. Também não emiti um longo e confortável ‘Aaahhh......’ daqueles de quando a gente se espreguiça. Foi apenas um ‘Aaaaa’ e ponto final. Não diz nada. Mais ou menos semelhante à resposta do mordomo Tropeço, da Família Adams, quando alguém lhe fala qualquer coisa.

“_O que tem agora?” – interpelei, mudando de assunto.

“_Agora você entra na banheira do ofurô. Tenha um bom momento”, apontou, falando pateticamente bem baixinho.  
Por isso lá estava eu, imerso na água quentinha e cheirosa, rodeado por pétalas vermelhas. Senti falta de uma TV para me distrair. Também não havia música, e o silêncio não existia por causa do barulho do trânsito lá fora. A luz que vinha da janela entreaberta novamente incomodava. Acima de mim, havia uma lâmpada suspensa. Inevitavelmente me veio à memória a cena de alguma novela em que um aparelho elétrico ligado é jogado por um assassino na banheira, torrando o banhista. “Bom momento... tsss”.

Entediado, passei a admirar as formosas pétalas que desfilavam cheias de charme e vagarosamente. Sedutoras, com um perfume bom demais. 

Aí entendi a costumeira associação que se faz da rosa vermelha à paixão. Entendi também a lógica dos insetos, a razão pela qual as abelhas e marimbondos chupam incessantemente o núcleo das flores. E o motivo de formigas e joaninhas também curtirem descansar por ali.

Na parede, havia um relógio de ponteiro parado, marcando seis e meia da manhã. Mas já era meio-dia e o calor me aborrecia no ofurô. O pior foi quando afundei a cabeça e me senti como um pastel se sente ao ser mergulhado na gordura quente. Emergi sentindo cheiro de óleo, com o rosto e o cabelo melados.

Fui salvo desse martírio quando a tal mulher da massagem reapareceu dizendo que o tempo havia se esgotado.
Vesti-me e parti daquele lugar infernal. Por razões éticas, não mencionarei o nome do estabelecimento. Mas fica na rua Tomás Gonzaga, número 4000. Bairro Lourdes, na capital de Minas Gerais. Na saída, descobri que o ‘lanche’ referido na propaganda que me atraíra consistia em uma barrinha de cereal. Saborosa, mas não o suficiente para compensar os meus preciosos 59 reais investidos na empreitada.

Remoí a constatação de que custaria menos do que isso a viagem de ida e volta para ver minha família no interior. Daria também para comprar, por 59 mangas, uma camisa bacana; mas priorizei essa massagem tosca. Eu descolaria uma balada open bar por esse mesmo valor. Mas passei a manhã lambuzado de óleo, sentindo calor. Que prejuízo...

É isso, crianças. Quando seu sanduíche no Subway, mais o refri, ficar em 20 reais, não se zangue. Se a garrafa de cerveja tiver custando 6 no boteco, beba satisfeito. Se te oferecerem um ingresso a cinquentão para ver o jogo do Mequinha na Série B, compre...

...compra porque tá barato pra caralho!

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Parto perfeito

Hipermercado em horário de pico é tão tumultuado quanto o trânsito na capital. Tão estressante quanto uma redação de jornal diário. Nessa hora, todos voltam do trampo e vão às compras, inclusive eu. 

Logo na entrada do Extra, mendigos armam o cerco para filar uma esmola. Os únicos carrinhos de compra desocupados têm as rodas empenadas ou frouxas.

Não há ninguém para informar onde ficam as barras de cereal, nem onde se pesa os chuchus. Uma velhinha gulosa briga comigo pelo último sucrilhos da prateleira. E vence. A fila no caixa é comprida por demais, o sistema dá pau e o freguês à minha frente resolve passar três carrinhos abarrotados, um barril de botar lixo, uma escada e quatro pneus.

Por falar em pneus, não tenho carro. Tampouco paciência para voltar ao hipermercado e vivenciar tudo de novo. Portanto, carrego nos braços todos os mantimentos do mês de uma só vez. Não respeito o limite de 20 kg suportado pela sacola. Assim que deixo o estabelecimento, ela começa a se romper. Precisarei carregá-la apoiando o fundo com uma das mãos ao longo de 2 km.

Esse calvário acaba me deixando confuso, então escolho a saída errada do estabelecimento e desemboco no quarteirão inverso. Terei de contornar a quadra para seguir rumo ao meu lar, o que alonga ainda mais o percurso.
Enquanto vou me contorcendo ao segurar a imensa sacola de compras prestes a arrebentar, disponho de todos os palavrões de que tenho conhecimento para lamentar pelo início de noite desastrado. Suado, cansado, indignado, dolorido, puto da vida!

Mas deparo-me, de súbito, com algo que me deixa perplexo.

Fico paralisado, mirando o cenário familiar. Um filme me passa pela mente. Visualizo cenas remotas e com pouca nitidez. Recordações há muito adormecidas vêm à tona. É a portaria de um hospital. O letreiro informa: HOSPITAL SEMPER.

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Há alguns anos, eu vira essa mesma portaria pela primeira e única vez. Foi quando deixava o recinto onde ficara internado durante cerca de uma semana. O episódio remonta-se em minha memória com muita precariedade. Na ocasião, eu me recuperava de um traumatismo craniano grave que me deixara em coma por 48 horas, e de inúmeras escoriações. Não batia muito bem da cabeça. Tinha apenas doze anos de idade.

Ao rever a fachada, lembrei-me das minhas impressões naquela distante tarde de sábado. Sentia alívio. Embora não estivesse totalmente recuperado quando deixei o leito hospitalar, preferia receber alta do que ser um paciente internado. No linguajar de hoje, trocava então meu status.

“Bora Deus. O pior já passou.”

Tudo ainda era muito confuso para mim. Eu não me recordava do acidente que me trouxera ao hospital da capital. Felizmente, a cena havia sido apagada do disco rígido. Nem fazia muita ideia do sofrimento pelo qual havíamos passado minha família e eu. Disseram-me que fui atropelado.

_Mãe, eu tô sonhando? Toda vez que acordo, te vejo do meu lado.
_Foi um sonho ruim, filho, mas já passou, graças a Deus.
_Como assim? Quê que aconteceu?
_Você foi atropelado por um carro quando andava de bicicleta, filho.
_E como tá minha bicicleta?
_Sua bicicleta estragou toda. A roda virou um oito. Joguei fora.

Voltei a dormir, pensando: “Essa minha mãe... sempre exagerada!”.

Recebi a visita do meu tio Tião.

_Filho... psiu... filho... você reconhece esse tio?
_Ah mãe... tio Fernando. – e me virei para dormir de novo.

Tinha dificuldade para articular as palavras. No fundo eu sabia que era o Tião. Eles pensaram que eu tinha ficado doido.

“Que preguiça de pensar e de tentar falar...!” – confabulei indignado.
Novamente diante do Hospital Semper, a noite caía e eu nem sentia mais o peso da sacola e a dor nos antebraços. Retomei outros instantes raros concedidos pela memória. A primeira vez que andei de elevador, e de cadeira de rodas. A primeira vez que vi uma máquina onde a gente enfia dinheiro e dela sai Coca-Cola. O cheiro fortíssimo da comida do almoço.

_Mãe, quê isso? Tô tão doido que tô comendo até berinjela...

O quarto branco, os enfermeiros me levando para o banho. O futebol de areia na TV.

“Esse pessoal que eu nem conheço me vendo peladão todo dia...”

“Esses caras na praia e eu aqui de cama, sem saber nem o porquê. Que bosta.”

Falei com minha irmã, criança de nove anos, pelo telefone. A boca não obedecia mesmo ao que o cérebro queria dizer. Depois soube que ela chorou ao me ouvir conversando com aquela moleza. Chegou uma cartinha sua.

Permanecia acordado pouquíssimos instantes por dia. Não sentia dor, só um soninho constante. Ouvia o pessoal falando sério sobre minhas possibilidades de recuperação. Iam e voltavam de Monlevade para trazer alguém ou alguma coisa. Interessante: num piscar de olhos o fulano ia e já estava de volta!
As divagações duraram alguns minutos. Emocionei-me, fiquei também um pouco impressionado. O tempo, o senhor dos destinos. Ele avança, voraz, e o que resta após sua passagem são só as lembranças. Muitas vezes, nem elas. Falando nisso, quanto tempo se passou mesmo...?

Bem, vamos lá: janeiro de 1998. No dia em que voltei do Semper, completava-se um mês desde que eu havia ganhado a bicicleta de presente de Natal... logo, dia 24 de janeiro. Que dia é hoje mesmo? Ops! Caralha! Hoje é 24 de janeiro de 2012. Faz 14 anos! Na risca!!!

Depois dessa constatação, eu, que já era um rapaz boquiaberto, fiquei pasmado de vez. Após ter estado entre a vida e a morte, nasci de novo, em 24 de janeiro de 1998. Hoje é, pois, meu aniversário de 14 anos! 

E cá estou. Voltando do meu trampo, de bermuda nova. Trabalho somente à tarde e posso ir de bermuda. O emprego é bom, concursado, de jornalista. Carrego um fardo pesadíssimo, mas são apenas as compras do mês. Estou exausto. Mas é só chegar em casa, deitar, abrir uma latinha e fico novo, de novo.

Cá estou. Pensei em entrar para rever o interior do Semper, mas nem rolou. Basta de observá-lo. Não estou mais zangado por ter saído pela porta errada do hipermercado. Pensando bem, acho que essa maluquice de ficar frequentemente perdido, entrar na rua errada ou sair de tal lugar pelo lado mais difícil pode ter sido a única sequela do acidente.

Antes de partir, uma olhadela para o céu.

“Bora Deus. Nasci de novo e o parto foi perfeito. Ou quase.”