sábado, 24 de dezembro de 2011

O dia em que Noel caiu do trenó

O alarde veio lá da Ásia. A chinesinha Chun ficou furiosa porque ganhou um Playstation no lugar da girafinha que tanto queria. Enviou dezenas de cartinhas nos dias que seguiram, reclamando ao bom velhinho. 

Naquele 24 de dezembro, pela primeira vez em tantos anos, Noel se atrasou. É que na hora de trabalhar, o despertador não tocou. O barbudo havia tirado um cochilo após assistir a uma partida de hóquei pela TV. Sabe como é: sofá macio, casa quentinha, TV de plasma... Ele acordou assustado, saiu às pressas e acabou se atrapalhando todo.

E o pequeno Joãozinho nada entendeu quando abriu o embrulho: uma bicicleta rosa, e com rodinhas! “Mas eu pedi uma bola de futebol!”. Bob, que negociara um violão com Santa Claus em troca de tirar boas notas no colégio, pôs-se a chorar quando se deparou com um par de patins sob sua árvore natalina.

As bolas foras não pararam por aí. Papai Noel pagou mico no lar de uma família africana, quando em vez de entrar pela chaminé deu as caras na área de churrasco e foi surpreendido por todos. Isso sem falar que a jornada fora muito mais lenta do que o usual, porque Noel escalou por engano algumas focas para puxar o seu trenó: como todos sabemos, as focas não voam! O velhote ainda seria pego no bafômetro, na Alemanha. Quando passou por lá, não resistiu e desceu alguns chopes. O guardinha acabou perdoando a multa ao ouvir sua justificativa: “Ho, ho, ho, foi mal aí!”

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Depois de uma noite de trapalhadas, o velho regressou à sua fazendinha, no polo Norte do planeta. Então percebeu que largara a porteira aberta. Sua criação de leões-marinhos havia fugido. Um urso polar acabou devorando seu pinguim de estimação. No jardim de inverno, lá estava um boneco de neve, fantasiado de Noel, bombardeado com tomates podres e moedinhas, em sinal de protesto.

No fogão a lenha, o peru havia tostado. Dali a pouco, o senhor de barbas alvas encontrou seus chinelos de tamanho 43 molhados, na porta do chuveiro. “Ops! Quem os calçou na minha ausência? E pra onde foram Mamãe Noel e meu leal elfo Richard?”. Ao se mirar no espelho, constatou que trazia na cabeça uma bota felpuda. O gorro, por sua vez, estava no pé.

O ancião então se angustiou. “Só pode ter sido maldição de algum desaforado!” — esbravejou rouco. Mas quem? Quem teria sido capaz de armar contra o generoso guru natalino? Que coração rude ousaria comprometer a mais valiosa comemoração de todas as crianças da Terra?

Procurou por pistas, vestígios de tal alma ingrata. Os olhos cansados rastrearam então minúsculas pegadas que levavam até a guirlanda. 

“Caraca!” — Noel desvendava, enfim, quem havia lhe lançado tal praga.

Abaixou os óculos para ler melhor.

Num bilhete, estava escrito assim: "Quem é o bonzão agora, otário? Atenciosamente, Coelhinho da Páscoa".

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Global Positioning System

Aprendi que, na capital, 1700 metros de distância quer dizer “logo ali”. Assim sendo, posso dizer que sou vizinho do maior conjunto de hospitais, clínicas, prontos-socorros e afins de todo o Estado: o complexo da Área Hospitalar. De lá, tomo todos os dias um coletivo que me entrega, em trinta minutos, na porta do trampo: a UFMG. Também é na Área dos Hospitais que desembarco após o expediente, e sigo caminhando de volta ao lar.

Há alguns anos, ter um cafofo nos arredores de um núcleo como esse seria para mim elementar, devido às recorrentes bebedeiras que eu praticava. Por vezes, precisei comparecer (ou ser levado) ao hospital para equilibrar meu nível sanguíneo de glicose; outras, porque a ressaca passou a provocar em mim a sinistra Síndrome do Pânico. Teve também a noite em que quase mutilei meus dedos da mão direita com os cacos de um copo de vidro. Em outras oportunidades apanhei, embriagado, sem saber direito o porquê.

Mas a juventude foi ficando para trás e tudo isso já está praticamente superado em definitivo.

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Dos remotos anos de minha vida, conservei a irritante sina de sempre ficar perdido. Nas terras interioranas onde nasci e me graduei, cometi erros vetoriais, ridículos. Hoje, morando na cidade grande, perco o rumo quase todos os dias. É vasto e humilhante meu histórico de equívocos de rota.

Tento desenvolver, então, artimanhas para evitar os desvios. Para ir ao trabalho, por exemplo, vou codificando referências como igrejas, bares e nomes de ruas. Acontece, porém, que já se foram várias tentativas frustradas de completar o traçado sem me confundir entre o emaranhado de logradouros de BH. Por isso, as referências corretas misturam-se às erradas, compondo um louco mosaico de registros que em nada me ajudam.

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Mas ontem haveria de ser minha redenção. Pela primeira vez, chegara à Área dos Hospitais pelo caminho mais curto, sem deslizes. Fui trabalhar aliviado. Bastava então que, a partir das 19 horas, eu regressasse em segurança à minha casa e pioneiramente seria completado, impecável, o trajeto de ida e volta do meu ganha-pão. O que para um sujeito normal não representa nada demais, seria para mim um divisor de águas. E por falar em águas, o céu desabou na Capital das Alterosas durante todo o dia.

Ao término do expediente, deixei então, esperançoso, a avenida Antônio Carlos, em frente ao campus universitário. Do ponto onde embarco até o extremo dessa avenida são 5,5 km. A partir daí, normalmente o busão ingressa no Centro da cidade e percorre cerca de 3 km até a famigerada Área Hospitalar, no bairro Santa Efigênia. E então volta para a Antônio Carlos.
Dado momento, o coletivo empaca num gigantesco engarrafamento. Minha intuição acusa que estou próximo do meu destino. Concluo, logo, que se descer e prosseguir a pé, chegarei mais rapidamente.

E assim faço. Caminho sob a chuva fina, debochando dos passageiros que abarrotam os veículos, cantarolando e contemplando a liberdade. Afinal, não me importo de molhar o cabelo e a roupa, moro “logo ali”, esbanjo fôlego e saúde. Sou independente e essa avenida tumultuada me parece mesmo familiar.

A caminhada solitária me leva a refletir sobre o quanto sou privilegiado: comecei a trabalhar em Belo Horizonte, onde há muito almejara fixar raízes. Minha rotina não é estressante, o calor na metrópole não incomoda, vivo com bons amigos em um bairro agradável... eita! Já andei uns 30 minutos e não sei mais onde estou! Bosta! De novo!

Antes de entrar em desespero, capto vestígios que ajudem a me situar. “Hum... aquele depósito. Hum... aquele cruzamento”. Nenhum resultado. Tento abordar um taxista, mas ele se recusa a abrir o vidro para me ouvir. “Esse malandro na chuva deve tá querendo me roubar!” – teria pensado.

Mais à frente, avisto uma senhorita, andando de sombrinha entre o amontoado de automóveis lentos. Apresso o passo, com a cautela de não parecer um assaltante. “Olá, boa noite, por favor, que rua é essa?”. A resposta não poderia ser mais animadora: “Essa é a Antônio Carlos. A UFMG é logo ali na frente!”. 
O pior sucedeu. Uma hora e meia depois, estou eu de volta ao ponto de origem. Isso mesmo! Por incrível que possa parecer, eu fora capaz de percorrer toda a avenida onde fica meu trampo, circular pelo Centro, e voltar para a mesma avenida, completando o itinerário do busão! Difícil acreditar, mas eu fui capaz. Só me restou pegar novamente o ônibus e fazer tudo de novo. “Onde foi que eu errei dessa vez?” – passava pela minha cabeça...

Já era nove e meia da noite quando finalmente desci no meu destino, a praça Hugo Werneck: uma bela região, cercada por árvores, hospitais, prontos-socorros e clínicas por todos os lados!

Por aqui também há botecos.

Depois de todo esse episódio mereço tomar uma cerveja antes de ir para casa. Preciso relaxar. Aliás, uma só não. Duas, ou quem sabe seis...

Se eu passar mal, me cortar ou apanhar não tem problema. Hospital por aqui é o que não falta.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Divagações metropolitanas

A pressa que assola o aglomerado de cidadãos nas estações de metrô me deixa encafifado. Adolescentes, senhoras, gordinhos ou mocinhas: todos eles na correria. Mas para que? Por acaso presumem que o lugar para onde vão está muito melhor do que o lado de cá? Ou, de outra forma, por aqui está tão ruim que eles não vêm a hora de chegar a seus respectivos destinos?

Aquele japonês com cara de doidão, se desacelerasse o passo, perceberia que há muitas maneiras de se distrair em meio às conexões metroviárias. Eu, que caminho lentamente, sempre organizo, secretamente, concursos de beleza feminina. A cada viagem, desfilam pela minha passarela centenas de candidatas a caminho do vagão. A disputa segue com o trenzinho em movimento. Além da Musa do Dia, são premiadas a Miss Simpatia e a Miss Coroa.

Quando não estou apreciando a beleza exterior das mulheres, julgo o caráter dos usuários em geral. Por meio de uma análise superficial, consigo desvendar com precisão a idade, a profissão e o estado civil dos metropolitanos. As professorinhas são facilmente identificadas. Alguns têm cara de Geraldos, outros moram com a avó. Há os que claramente gostam de assistir corrida de automóveis pela TV. E os que enviaram seus currículos e agora se dirigem, com ansiedade, a entrevistas de emprego.

Só não absorvo a razão pela qual sempre sobem as escadas atropelando uns aos outros...

Tem aqueles caras que já foram presos, ou em breve o serão. As senhoras que não suportam mais ficar dentro de casa com seus maridos aposentados, entediados e rabugentos. As graciosas voluntárias que se fantasiam de palhaças para animar eventos infantis na pracinha. Às segundas-feiras, sou capaz de identificar os torcedores que ostentam, contentes, os símbolos do time de sua preferência. Até esses se locomovem rapidamente.

Interessantes também são as distintas procedências da rapaziada. Aquele grupo de moleques de boné mora em uma cidadezinha dos arredores da capital. Fazem um curso profissionalizante. A donzela de cachinhos nasceu em Goiás. Trabalha o dia inteiro e despende todo o seu salário para custear a faculdade noturna de Administração. Isso talvez explique porque anda tão afoita.

Somente aqui, neste vagão, há um garoto de programa, uma advogada cujo automóvel está na oficina, um menininho que fugiu de casa, uma enfermeira muito católica, um capiau que nunca andou de metrô, um caboclo gente boa que dormiu na casa da sogra e um desempregado que acordou cedo à toa. São diferentes interesses e realidades que convergiram para a mesma caixa de metal que se arrasta sobre os trilhos! E todos eles, como já mencionei, atravessam voando entre as roletas.

Eu, por exemplo, quem passa correndo nem imagina!, sou de Monlevade. Estava no Espírito Santo no fim de semana, prestando um concurso público. Cheguei às sete da manhã na estação São Gabriel, no leste de Belo Horizonte. Estou a caminho de Contagem, no extremo oeste, onde desembarcarei e tomarei outro coletivo para chegar ao trabalho.

Como só bato o ponto às nove, não tenho o mínimo de pressa. Por isso estou tranquilo, e sigo meu rumo observando tudo. Devagar. E divagando.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Coifas & Depuradores


Um adolescente, quando o destino lhe dá asas e ele vai voar longe da família, experimenta uma imprevisível dose de liberdade e outras generosas de aprendizado. Desfruta-se de coisas boas morando com outros estudantes numa cidade universitária, mas também é comum se esborrachar no duro chão da convivência indesejada.

No meu caso, posso dizer que um momento chegou, enfim, lá pelos vinte e poucos anos de idade, em que me cansei de todas as pessoas deste ingrato planeta. A essa altura, já tinha me formado na faculdade e fazia jus a um modesto salário como jornalista da câmara de Contagem. Era o suficiente para poder mudar de fase.

Queria um canto só meu. Entrar em casa e encontrar o prazeroso silêncio e a valiosa solidão. Andar pelado e ligar o som. Abrir as janelas, a cerveja, uma revista e o chuveiro – tudo ao mesmo tempo, sem incomodar ou ser importunado.

Acabei descolando um cafofo onde mal cabiam uma cama de casal e um lugar de pendurar a toalha. Pensei: “Maneiro. Para começo de conversa vou comprar uma vassoura. E um sabão”.

É aí que começa o caso.

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Cheio de ânimo, rumei ao supermercado e me aventurei pela misteriosa seção de materiais de limpeza. Ali conheci um universo cheio de complicações. 

Antes de alcançar o simplório sabão, fui apresentado a seus semelhantes sofisticados: alvejante e desinfetante. Passei direto pelos solventes.

Mais adiante, me deparei com os inoportunos clorados e os inúteis limpa-fornos. Por outro lado, achei um barato os chamados saponáceos. Não quis comprar nenhum desses.

Descobri que um pano, para ser alguém na vida, precisa ser um pano multiuso. Quase tropecei num estoque de desentupidores. Tive vontade de chutar as esponjas sintéticas e os polidores de metal, para bem longe.

Os amaciantes, com diversas cores e fórmulas, por suas vezes, me cativaram pelo perfume sublime. Paquerei também os eficientes lustradores e as simpáticas pastilhas para ralo.

Imaginei que os odorizadores de ambiente, quando crescessem, gostariam de ser bem-sucedidos limpadores perfumados. Mas logo me dispersei.

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Por fim, decidi levar uma cera líquida, um álcool em gel e um negócio de eucalipto. Ah, e achei muito interessante um pacotinho em que estava escrito Coifas e Depuradores. Também ocupava a prateleira, perto das lãs de aço.

Eu sabia, e qualquer avestruz também sabia... era só jogar no Google para descobrir qualquer coisa. Mas todo aquele episódio me fez perceber que eu estava perdendo minha inocência. 

Por isso, decidi:

Eu jamais pesquisaria sobre o que vêm a ser Coifas e Depuradores.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Bliguinho


Na madrugada, melancolia e solidão. Os músculos das costas sofriam: tinha de me curvar para arrastar a mala de rodinhas com a alça quebrada. Não seria problema se não tivesse de carregar, ainda, uma bolsa, uma mochila, uma sacola imensa. E a pesada saudade que insistia em vir junto. 

A chuva fina incomodava. Instantes antes, havia chorado pela última vez ao deixar o apartamento vazio de gente. Seu caráter de lar desconfigurado por causa de um mundo de mobílias amontoadas, tanto dos predecessores quanto dos novos moradores.

Despedi-me da suíte que fora só minha por meio ano e dos demais cômodos da casa. Se tivessem o dom da fala, as paredes relatariam às gerações vindouras, com entusiasmo, as farras ali vividas, desde o tempo em que passou a ser divertido tomar um fardo inteiro de long neck assistindo futebol na TV.

Diálogos com amigos, videogame, paqueras e casinhos. O ímpeto de nostalgia havia feito telefonar para a namorada de cinco anos atrás. Um contato inédito, diferente das duas ligações anuais, nos respectivos aniversários. Certamente ela não estaria na cidade.

Estava, mas não fez questão de me ver. Com os olhos de cimento rasos d’água, as paredes me disseram o último adeus.

Abençoado pelo sentinela da rua, "vai com Deus, irmãozinho!", caminhava lento, dolorido, a caminho do ônibus que me levaria para longe dali. O pensamento perdido em lembranças, planos, lamentações, devaneios.

Em dado momento, minhas vistas imperfeitas detectaram um corpo pequeno que se aproximava, e que fez lembrar um sujeito pitoresco, conhecido como Bliguinho. Mas aquele que vinha parecia ser ainda menor. “Quer ajuda com as malas?” — abordou-me. Percebi que era mesmo Bliguinho.

Apesar do rosto infantil e do porte minúsculo, não é mais criança, porque tem barba na cara. Não é adulto, por causa do sorriso puro. Não é mendigo, os dentes saudáveis. Não é lúcido, vaga pela cidade. Vez por outra, em ocasiões inoportunas, presta louvores a este ou àquele time de futebol. Não é bobo, tentou beijar minha garota uma vez. Esse é Bliguinho, que despencou às três da manhã na avenida principal para me ajudar com as malas.

Ao contrário do que ele pensara, eu não estava sozinho. Afundado em memórias, no momento derradeiro na cidade universitária, acompanhava-me o motorista espertalhão que me trouxe pela primeira vez a Viçosa. Ele falava um monte de putaria e eu era um adolescente que me achava muito doido porque iria morar fora aos 15 anos de idade. No som do carro tocava uma música boa, parecendo country, que minha ignorância internacional descobriu, anos depois, tratar-se de Dire Straits.

Voltou à tona aquele porteiro do prédio que conseguia gostar de mim embora eu fosse o adolescente mais baderneiro do condomínio. A turma do colégio, os folclóricos malucos da cidade. Os caras da república, os amigos da faculdade. E as tantas pelas quais me apaixonei.

A partir daquele momento tudo seria passado. E a última pessoa que encontrei na cidade enquanto ali morava foi o pequeno Bliguinho, que certamente não faz ideia de quem eu seja. Misto de criança com adulto, alegria, insanidade. Assim como a vida em Viçosa que se findava.

“Quer que te ajude com a mala?”. “Precisa não, Bliguinho, já tô chegando”. Deu meia volta e sumiu no mundo.

terça-feira, 12 de julho de 2011

O velho cão da boemia a um dia de se casar

A princípio, Walter teve de se desfazer das bermudas tactel e dos pares de sapatênis. Deixou de lado as camisas estampadas e o brinquinho de argola. Abadás de micaretas passadas não veria mais. O infalível gel fixador deu lugar ao creme para pentear. Isso, no decorrer de, apenas, o primeiro ano de namoro.

Já há algum tempo, ele vinha se preparando para a iminente transfomacão. Teria de jogar para escanteio o compromisso de acompanhar as séries A, B e C do Brasileirão diariamente pela TV. Desde o mês anterior, passara a abrir mão dos campeonatos turco e português. Será preciso se adaptar a dividir o lar, seu tempo e atenções com a esposa. Eventualmente vai assistir à melosa novela das nove com a amada.

A vida é mesmo assim, feita de fases.

E é bom ir se acostumando com a ideia de compartilhar com a mulher a direção de seu tão estimado Toyota Corolla. Até então, o leme do possante jamais fora manejado por outrem. Com sua dama, aprendeu a ajeitar a cama e tampar a pasta de dente. Foi pela primeira vez a um restaurante japonês e à cidade histórica de Tiradentes. Das malandras viagens só com amigos, já se acostumara a estar ausente. Logo ele, o líder nato da moçada.

O velho cão da boemia está a um dia se casar.

Quanto à mais significativa das mudanças, no entanto, seu coração quer relutar. Essa sim, irreversível, mas ele sabe que tem de assimilar. Diz respeito àquilo que o faz se sentir homem. Instinto voraz, algo maior do que ele.

A bem da verdade, é muito comum entre os machos manter tal hábito, mesmo depois de casados, enquanto tiverem energia. "Mas não sou como os outros" — insiste o noivo em tentar convencer a si próprio.

Na véspera de seu adeus à vida de solteiro, ele decide que faz jus a uma recaída. "Voltarei lá, mas será a última vez" — estabelece. Logo na entrada, reencontra alguns de seus cúmplices. Gente boa, mas sem futuro. Não dizem nada que presta, estão ali à caça de prazer e diversão.

Walter se emociona ao imaginar que nunca mais pisará o recinto onde tanto se saciou. Sente uma ponta de inveja quando avista um companheiro, completamente suado e satisfeito, relaxando ao sabor de uma cerveja gelada.

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Tentando não pensar em mais nada, lá está Walter, enfim, pela derradeira vez, fazendo aquilo de que mais gosta: vestindo a camisa número 6 do time dos solteiros, na pelada de sexta-feira da firma. Titular absoluto da lateral esquerda durante nove anos, ele deixou escorrer uma lágrima assim que ouviu o apito inicial. O time dos casados joga com dois volantes e três homens de armação. Não há lugar para um ala de contenção. Por isso Walter decidira, com imenso pesar, pendurar as chuteiras ao fim da peleja.

É difícil aceitar, mas a vida é assim, feita de fases.

sexta-feira, 25 de março de 2011

O poeta e o mar

Dizem que o mar inspira os poetas.

Numa orla capixaba estava o poeta mineiro, contemplando aquilo que ele julga ser a mais fantástica das criações: o Sol se despedindo, na praia.

E ele se extasiava com tamanha perfeição. A linha de paz que separa o céu do oceano era a mais precisa ilustração do infinito. Fazia com que o poeta se sentisse quase tão pequeno quanto os grãos de areia esmagados sob suas nádegas brancas. O som das ondas se quebrando, o gosto da cerveja, a brisa ofegante, combinados, proporcionavam-lhe uma experiência sensorial pra lá de deliciosa.

Algo, porém, o intrigava e o fascinava em especial: as conchas. Aquilo era para ele o mais sublime artesanato, a mais prima das obras de arte. Qual o esmero tido pelo Criador ao desenhar as curvas, colorí-las. Dar a cada uma a devida estampa. Diferentes relevos e dimensões.

Quando tivesse seu filho, — divagava — e esse adquirisse a capacidade da cognição, o poeta diria-lhe que cada uma das conchas do oceano representa uma vida humana pelo planeta. As que chegam à margem partidas são as pessoas que já morreram. E se o filho separasse duas conchas fechadas, nesse momento desataria duas almas gêmeas em algum lugar do mundo.

O poeta chegava a selecionar uma ou outra concha para ser observada de pertinho, mas tinha de ser ligeiro na coleta.  A torrente de água salgada vinha, impiedosa, e carregava todas as que encontrasse. Em compensação, trazia outras centenas. Fazia isso, sem parar.

Encantado, ele sabia que, na condição de poeta, teria de elaborar, ali mesmo, versos de amor. A emoção seria seu estímulo e as palavras haveriam de escorrer, fáceis, embaladas pela sensibilidade inerente ao momento. Pensou... pensou... quebrou a cabeça. A única coisa que saiu foi isto:

"Muié é igual concha na praia. Se ocê escói uma e ela vai embora, na mesma hora vem um punhado, uma mais linda do que a outra"

Importante: os textos publicados nesse blog
não correspondem, necessariamente,
ao ponto de vista do autor.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os três filhos de Dona Piedade


Pesando pesadíssimos seis quilogramas, nasceu Janjão do ventre de Dona Piedade. E o rebento nasceu independente; digo isso porque cortou ele mesmo, de próprio punho, o cordão umbilical que o ligava ao organismo materno. Aos dois anos de idade, Janjão não permitia ser carregado no colo por ninguém: ia e vinha sozinho. Aos quatro, era ele quem levava e conduzia de volta os colegas da escolinha. Durante toda sua infância, Janjão capitaneou as porradarias que mobilizavam os moleques da vizinhança, e era também o responsável por selar a paz no recinto, se lhe conviesse. No início da adolescência, determinou que não frequentaria mais o colégio, e não havia quem fosse capaz de fazer o Janjão mudar de ideia. Nem mesmo a Dona Piedade.

Janjão cuidou do irmão Mário Vítor, dez anos mais moço, como seu guru, guia e mentor. Monitorava sua alimentação e seus estudos, fazendo as vezes da tão atarefada viúva Dona Piedade, que labutava como faxineira para sustentar as crias. Diariamente, o primogênito conduzia o irmãozinho nas costas para todos os compromissos rotineiros; isso durou alguns anos. Depois de um tempo, Janjão passou a recrutar meninas para que o pimpolho Mário Vítor namorasse. Fazia tudo e mais um pouco para o êxito do guri.

E o menino Mário Vítor foi um investimento que vingou sobremaneira! Aonde fosse, era destaque por sua inteligência e elegância. O orgulho do mano mais velho. De tão mimado toda vida, Mário Vítor tornou-se meio esnobe, mas não deixou de ser sucesso absoluto, verdadeiro fenômeno: ora ganhava concurso de redação, ora de beleza. Ora brilhava em olimpíada de Matemática ou então arrebentava como artilheiro no futebol.

Formavam uma dupla deveras sublime, o prodígio Mário Vítor e o grandalhão Janjão — sempre à sua escolta.

(...)

O convívio no seio da família, que era bom, melhor ficou quando decidiram adotar o bebê Zezinho, que alguma alma largara na porta daquele lar, dormindo dentro de uma cesta de pão. Zezinho trouxe brilho incomum aos olhos dos dois irmãos. Janjão tinha dezessete anos, mas de tão maduro, grandão e barbudo, poderia ter trinta e cinco ou mais. Já o bonitinho Mário Vítor, a essa altura, era campeão em torneios de caratê, também tocava violão perfeitamente, e cantava bem, o danado. Uma vez que os mais velhos, cada um com sua particularidade, sempre gozassem de certo respaldo na cidadezinha de só cinco mil habitantes, Zezinho cresceria despertando expectativas e sendo o centro das atenções por ali. Não dava sinais de que seria forte e durão como Janjão, tampouco genial e prepotente como Mário Vítor. Zezinho aflorou fascinantemente carismático e se dava bem com todo mundo.

(...)

Quando Dona Piedade bateu as botas, a sobrevida financeira dos moçoilos ficou seriamente comprometida. Os bicos que Janjão fazia descarregando caminhões de mudança não seriam suficientes para garantir o pão de cada dia.

O grandalhão, ascendido de vez à chefia da família, decidiu então que abriria um negócio que lhes rendesse algum capital. Mas o que poderia fazer o cabra, que mal havia terminado a quinta série do colégio? Haveria de ser tiro certeiro, pois a velha Piedade lhe deixara somente uma merrequinha de nada para investir. Precisava de algo inovador e infalível... Pensou, pensou... Eureca! uma funerária. Não havia na cidade estabelecimento dessa natureza. Os defuntos, até então, tinham de ser velados e sepultados em outra localidade, distante 80 km.

E como morria gente na cidadezinha! Não havia água tratada, muito menos coleta de lixo; tampouco médico, nem farmácia. Nem padre e igreja tinha lá, para o caso daqueles salvos pela fé. Por isso, todo dia morria um infeliz.

Assim, em curto tempo, os irmãos ficaram ricos. E bombou na cidadezinha o cemitério que Janjão ergueu no quintal de casa. Trabalhava feito um burro e ganhava dinheiro de noite e de dia. Buscava e carregava o corpo do indivíduo morto; registrava o óbito de acordo com a lei; embalsamava, maquiava e vestia com pompa o falecido; conduzia o cortejo fúnebre; ornamentava a urna do cadáver. Em troca de um honorário extra, chorava durante o triste momento do sepultamento.

Foi assim que os três irmãos tiraram o pé da lama. A faculdade de Mário Vítor, irmão do meio, e sua estadia na capital, assim como a criação do pequenino Zezinho, foram bancadas graças ao bem-sucedido empreendimento de Janjão. Aquela família viveu tempos de paz e prosperidade. Os três irmãos eram felizes e se amavam demais!

(...)

Depois de alguns anos estudando na cidade grande, Mário Vítor regressou à terrinha onde tinha suas raízes. E lá aportou com status de celebridade. Tornou-se o primeiro e único médico do povoado. Era tão dedicado à profissão que nem tirava férias.

Os serviços do doutor Mário Vítor eram requisitados a todo instante, pois, de tão precários os ambientes da cidadezinha, sua população vivia sempre a perigo. O médico fazia nascer e salvava os bebês prematuros e desnutridos, curava as crianças com vermes e queimaduras, medicava os doloridos, dava esperanças aos anciãos esclerosados, reabilitava até os aleijados. Mário Vítor sagrou-se adorado por todos os cidadãos. E ficou milionário.

Durante quase uma década inteira, ninguém mais morreu por aquelas bandas.

Como todo mundo, em vez de morrer, vivia e vivia mais, os serviços prestados por Janjão da Funerária ficaram paralisados e o homem foi à falência. Teve de vender tudo o que tinha. Em seus caixões encalhados, multiplicaram-se teias de aranha. As flores que cultivava para os velórios murcharam. Janjão sucumbiu em profunda depressão e odiou o irmão com todas as suas forças. Ingrato! Maldito! Era Mário o culpado de toda a desgraça! Revoltado e arruinado, Janjão foi morar num abrigo público.

(...)

Os anos seguiram e Zezinho, o mais novo, na luxuosa mansão do Doutor Mário, desenvolveu-se em berço de ouro, com tudo o que havia de bom e melhor. Apesar de ricos, os dois irmãos jamais arredariam o pé da cidadezinha tão estimada. O caçula, cidadão reconhecidamente gente-boa, envolveu-se naturalmente com ações filantrópicas e defesa de causas diversas em favor dos oprimidos. Ele descobriu-se, pois, vocacionado para a carreira política.

Calhou que, aos vinte e um anos de idade, Zezinho foi eleito o mais jovem prefeito da história de todo o estado. Ele não tinha cursado faculdade, não falava inglês, mas era muito bem relacionado. Aliás, venceu o pleito por unanimidade de votos entre os eleitores, algo nunca antes imaginado na democracia brasileira. Para alcançar tal façanha, tirou proveito, inclusive, da popularidade outrora conquistada pelos irmãos mais velhos.

E Zezinho, bem intencionado que só ele, determinou que faria de seu governo um primor de integridade e eficiência. Aconselhou-se com professores renomados, economistas respeitados e gestores experientes. Passava noites em claro estudando as alternativas mais racionais para aplicar os recursos da cidade. E foi dessa forma que o filho mais moço de Dona Piedade também vivenciou o sucesso em sua plenitude. A fama do excelente mandatário espalhou-se rapidamente.

A cidade enfim conheceu o progresso e a urbanização. A criminalidade deu lugar ao índice de 100% de alfabetização. O povo passou a contar com orientação de sanitaristas e nutricionistas. Exterminaram-se as pestes. Erradicaram-se os vírus. Promoveu-se a vacinação. O direito aos medicamentos gratuitos foi assegurado a todos.

Durante uma década, ninguém mais ficou doente naquele lugar. Nem sequer um resfriado acometeu tal sociedade perfeita e feliz. Tampouco ocorreu uma briga com vítimas, acidente de trabalho ou auto-envenenamento de gente angustiada. Situação mais saudável não havia. Zezinho foi reeleito duas vezes por aclamação, sem votação nem nada.

(...)

Só quem não gostou nada disso foi o Doutor Mário Vítor, cujo salário costumava ser custeado com quase toda a arrecadação municipal. Eliminadas as doenças e demais flagelos, ele teve seus serviços dispensados. Ficou por um tempo entediado, contexto que logo evoluiu para gravíssimo estado depressivo. Envolveu-se com drogas e gastou a maior parte da sua fortuna com os vícios. Após uma noite de esbórnia, acordou com o abdômen cortado e costurado; subtraíram seu rim ou outro qualquer órgão vital. Mário enlouqueceu, até tentou se matar. Dizem que foi visto pela última vez vadiando, ao relento, feito um doido pela rua.

Já o Janjão da Funerária hoje está esquecido e debilitado num asilo. Nunca mais se recuperou das desilusões sofridas. Não anda, não fala, não reconhece ninguém nem se recorda de coisa alguma. Zezinho, por sua vez, fica sozinho e escondido dentro de casa o dia inteirinho. Vive com pânico porque sofreu vários atentados nos últimos meses, motivados por perseguição de opositores políticos. Toma remédios psiquiátricos fortíssimos e quase não tem mais lucidez. Renunciou à vida política e também à social. Ameaçado de morte todos os dias, sabe-se lá por quem, nem abre as janelas, de tão amedrontado.

Os três filhos de Dona Piedade poderiam constituir uma família feliz eternamente. Digamos que até começaram bem, mas por causa dos acontecimentos que sucederam, nem podem mais olhar um na cara do outro.

Como se diz por aí: a vida é feita de escolhas. Se tivessem optado por ser apenas vagabundos, as coisas terminariam diferentes...

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Meu amigo Bolota

Conheci o Bolota na segunda série do colégio. Era uma criança pacata, incapaz de fazer mal a alguém. Era ingênuo, tímido, além de gordinho, vesgo e gago. E usava aparelho nos dentes. Bolota era o alvo perfeito para a crueldade infantil hoje conhecida como bullying.

"Bolota", embora não deixe de ser um apelido cretino, foi o nome mais aceitável pelo qual o mal-acabado Bonifácio já fora chamado. Não que ele gostasse da alcunha, mas as outras criadas pela turma certamente queimariam ainda mais o seu filme. Por sinal, Bolota também não era muito simpático ao seu nome de batismo. Então ele aceitou numa boa: Bolota.

Bolota sempre fora um menino feio pra cacete, muito por conta da epidemia de acne que se instaurou precocemente em seu rosto. Para piorar, raramente cortava o cabelo, que tinha cor de ferrugem. Ele tinha incontáveis defeitos e o pior deles era ser muito vomitador. Quando obtia uma nota ruim na prova, ele vomitava. Se pisassem no seu pé, ele vomitava. E se rissem dele, vomitava de novo.

Mas, cá pra nós, eu sempre torci pelo Bolota. Gostava dele, até.

Bolota muito sofria com as chacotas da moçada, mas nem por isso deixava de estar junto dos outros garotos da classe. Afinal, exceto nós, ninguém mais na escola sabia de sua existência. As reuniões para trabalhos escolares em grupo eram sempre na sua casa, onde o lanche era melhor. Ele também tinha computador, playstation, piscina. E os irmãos do Bolota eram maneiros!

Eu o achava um bom amigo, o Bolota.

Enfim, crescemos, e durante alguns anos eu não tive notícias do Bolota. Pobre Bolota, tão bonzinho e tão desprezado... Cheguei a imaginar que ele tivesse passado sua juventude como um sociopata. Conjecturei, também, que tivesse vivido isolado em uma comunidade alternativa.

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Mas não foi nada disso o que aconteceu; recentemente me contaram todo o caso. Quando tinha lá seus dezoito anos de idade, Bolota, num belo dia, decidiu se matricular numa academia de musculação. A princípio, porém, nem gostou. Já no terceiro dia de atividade, pensou em desistir. Foi quando ouviu, pela primeira vez na vida, algo animador:

"— Me passa essa barra, FERA?"
Sim! Ele fora enfim tratado com respeito. Foi chamado de FERA pelo fortão da academia.

Esse foi o combustível para que Bonifácio passasse a se exercitar com afinco! Tomou alguns suplementos e drogas para catalizar o processo de reconstrução do seu corpo, sua imagem e sua personalidade. Com um ano de treinamento, tornou-se muito musculoso. Pouco tempo depois, passou a ostentar uma argolinha brilhante na orelha esquerda. E um piercing no mamilo direito. Começou a andar sempre perfumado, com gel no cabelo e topete impecável. Entrou na aula de violão.

A fase ficou mesmo boa quando ganhou de presente do pai um Honda Civic, pretão, lindo. E investiu mais dez mil reais em aparelhagem de som para o possante. Engatou o namoro com uma linda menininha, dessas que se apaixonam fácil.

Algum tempo depois, Bonifácio foi fazer faculdade no Triângulo Mineiro, e se apresentou à nova turma como Boni. Para aumentar sua popularidade, comercializava cocaína, LSD e outras coisinhas entre os estudantes. Ficou meio dependente quimicamente, mas isso era o de menos.

Boni ficou famoso, andava cercado de amigos e desfilava de carrão. Frequentava todas as baladas da cidade e, por isso, nunca se formou em Odontologia. Enquanto foi universitário, pegou mais de quinhentas mulheres. Não havia quem o desconhecesse. Era o terror.

Hoje em dia, ele tá sumido de novo, e muita gente na cidade universitária percebeu sua falta. Passará quatro anos na cadeia porque ficou muito doidão e quase matou um rapaz a garrafadas. Vai para o presídio assim que se recuperar numa clínica para viciados em cocaína. Antes, porém, tem de receber alta no hospital: dizem que apanhou feio de um marido enciumado. Ele também responde por crime de tráfico de drogas.

Uberlândia nunca mais foi a mesma depois de sua passagem por lá. Grande garoto!

Eu sempre soube que ele deixaria sua marca. Sempre acreditei no potencial de meu amigo Bolota!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estranhos no metrô


São, no máximo, quinze minutos de espera. E não há absolutamente nada para se fazer. Talvez por isso eu não consiga tirar os olhos de um estranho casal que, na estação Central de Belo Horizonte, aguarda a chegada do trem.

Ambos fumam, mas ela faz isso de forma frenética. Infla os pulmões com a fumaça tóxica, colore de cinza o ambiente em torno de si, e imediatamente traz de volta à boca o monte roliço de tabaco em chama branda. E sopra tudo de novo.

É magra, vestida de maneira básica. Nada de brinco ou maquiagem. Nariz um pouco grande, cabelos curtos e pretos, denotando liberdade e independência. Sua bunda tem um formato estranho, destoando da brasilidade das demais nádegas femininas presentes. Pode-se dizer que é uma moça bonita.

Ele, se não fosse gay, seria o namorado. Está despenteado, com a barba e bigode rebeldes. É o melhor amigo da mocinha. Cabelos cacheados e abundantes, discretos olhos azuis. Jeans e sapato de jovem. É gay mas não é afeminado.

Obviamente são jornalistas. Ou melhor, cursam a faculdade, mas jamais irão exercer. Serão pesquisadores, depois doutores, e, se as drogas permitirem que cheguem vivos à maturidade, irão lecionar aquilo que aprenderam. Nota-se que são socialistas convictos e ateus fervorosos. Não acreditam em espíritos, tampouco na família como instituição sagrada.

Ele é herdeiro de um bem-sucedido empresário paulista. Sempre adorou gastar dinheiro em baladas caras. Ao chegar em Minas, jogou fora as roupas de marcas famosas e passou a frequentar ambientes hippies. Hoje usa drogas em vez de beber cerveja. Tem cara de Sérgio, mas foi apelidado de Dark pelos amigos da faculdade.

Maria Cecília, durante a adolescência, namorou um skatista que pichava muros, para contrariar o pai. Veio para Minas Gerais fugindo da rigidez familiar. Tinha tudo do bom e do melhor no Paraná, mas hoje é mais feliz dividindo um apê de dois quartos com outras três garotas. Algo me diz que, se morresse hoje, ela iria para o inferno.

Entraram no mesmo vagão que eu. O casal que vejo pela primeira vez continuará dono da minha atenção. Agora eles pararam de se falar, o assunto esgotou. Sem motivo aparente, ele a abraça e beija seu rosto carinhosamente. Como eu já disse, é seu melhor amigo, gay.

Após meia hora de devaneios, o trem chega ao meu destino. Quase perco o ponto por causa dessas reflexões. Pelo visto, o casal vai descer aqui também. Sinto-me constrangido em caminhar lado a lado com os já tão íntimos desconhecidos.

O trajeto da passarela até o estacionamento parece não ter fim. Contenho o impulso de virar o rosto e continuar observando o casal de amigos, que pra mim já são bizarros. Ouço seus passos, sincronizados, e os imagino acendendo mais cigarros. Não percebo vozes, mas é inevitável confabular um diálogo entre eles, com um sotaque irritante qualquer.

Tenho pressa. Felizmente, minha namorada está à minha espera. Ela sorri de forma atípica.

— Oi Dudu! Quer carona?

Eu olho para trás e me surpreendo. Minha nossa! Como eu não havia reconhecido?! É o Carlos Eduardo, primo da minha namorada! Não o vejo há seis meses, quando tomamos uma cerveja no boteco de seu pai. Realmente tá mudado... o bigode cresceu um pouquinho.

Quem o acompanha é a sua noiva, a Silvinha. Formam um dos mais belos casais que já vi, nascidos um para o outro! Conheceram-se no Grupo de Jovens de Cristo, da paróquia aqui do bairro mesmo. Mas foi durante a faculdade de Direito que começaram a namorar. Formados há três anos, passaram no concurso da Defensoria Pública. Enfim juntaram uma grana e vão se casar. Deste ano não passa!

— Como você tá, meu peixe? Nem tinha notado a presença de vocês! Sabe como é... meia hora no metrô, a gente acaba cochilando...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Do jeito que eu sonhei

Naquele dia, como em tantos outros, enforquei todas as aulas do 5º período do curso de Jornalismo. Afinal, aqueles sermões não serviriam mesmo pra nada, assim eu cria. Esparramado na beira da piscina do condomínio, empreendia um esforço hercúleo, usando o poder invisível e interno de meus neurônios e sinapses, a fim de reconstruir o enredo do sonho que havia tido na noite anterior. Montando e remontando, eu ia, as pecinhas da narrativa à medida que pululavam no lago raso da memória precária.

Faz tempo. Acordei meio que chorando seco.

Durante aquela madrugada onírica, ela fazia indagações estranhas: Por que você só tem um brinco? Por que tá balançando a barriga?

Suas ideias eram criativas, mas compreensíveis. Queria dançar músicas do Casaca na hora de dormir. Concebia histórias com interações tão improváveis como a do Lobo Mau com o Luís Fabiano, que jogava na seleção brasileira. 

Pronunciava com a língua presa o fonema do S. A impressão era a de que ela selecionava, muito deliberadamente, palavras com esse fonema, só para pronunciar com a língua presa, de um jeito pra lá de engraçado, que dava vontade de imitar. 

Ela tinha um casal de amigos fictícios que passaram a ser meus amigos também. E como eram legais os dois danadinhos... Ao telefone, ela costumava conversar com outras pessoas também fictícias, a quem ela respondia, repetida e reiteradamente: não acredito! até parece!. Afinal, tais pessoas fictícias lhe diziam coisas ora surpreendentes, ora absurdas.

Sabia a medida certa das coisas: Gosto de pimenta, mas só um pouquinho, muito não. Antes de aprender a falar, solfejava a música de abertura da novela com perfeita afinação. Fui o primeiro a descobrir esse dom.

Eu tinha uma mania incontrolável de reparar em tudo nela.

Quando repreendida, ela ficava cruel: torcia as sobrancelhas, apontava-me o dedo na cara e ameaçava: Não faz isso comigo mais não. E era ainda mais cruel quando me desafiava, com ira e com ironia, olhando no fundo dos meus olhos apaixonados: Que tapinha foi esse que não doeu? 

Se eu morasse longe, ela me estranhava, não sei se por rancor ou por falha na cognição, e eu quase me arrependia. Por alguma razão, ela sempre aprovava minhas namoradas, e isso me satisfazia.

Naquele sonho, ela brincava de passar o nariz no meu, e eu já lamentava pela saudade que sentiria daquilo quando eu fosse embora.

Acho que por isso eu acordei chorando seco.

Às vezes, ela me surpreendia falando as minhas gírias e quando gostava das brincadeiras que eu inventava. Eu ficava extasiado quando ela me adorava. Quando indiferente, eu compreendia.

Ela se escondia de quem entrava em casa, só de sacanagem. Era independente, que chegava a irritar. Eu que vou dirigir. Eu que vou ligar para ela. Ah, já ia me esquecendo: ela tinha o meu mesmíssimo sangue — algo, porém, inadmissível, pois era quase loira, de cabelos artisticamente cacheados.

Acho que por isso eu descobri que era só um sonho.

Hoje, não tenho mais piscina e saio pra trabalhar todos os dias. Vez ou outra, eu me pego concluindo, em silêncio: Meu Deus! Ela é exatamente do jeito que eu sonhei!