quinta-feira, 13 de julho de 2023

Ideias para o mundo começar de novo – PARTE UM

É inegável que a humanidade se encontra,
desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada

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Pergunte a um avestruz o que acontece, desde que o mundo é mundo, com as pessoas que, em vez de morrer, envelhecem e vão envelhecendo mais e mais. 

Um avestruz, ou até mesmo um bode, saberá lhe dizer que a inteligência de um velho fica lenta, assim como o metabolismo. A visão embaça, a surdez ataca. O sono é mais difícil, o fôlego inexiste. Os músculos e ossos enfraquecem, a pele murcha, os dentes descolam. O ânimo esmorece, as doenças ficam recorrentes.

Dores, simplesmente, emergem, não se sabe de onde.

A mobilidade enferruja. A memória falha. As esperanças arrefecem. A solidão faz companhia. E muito mais.


Em contrapartida, na maior parte dos casos, a velhice contempla seus indivíduos com uma reserva de serenidade, que vem do desapego, que aplaca a ansiedade e traz sossego. Poxa, isso é realmente bem sensacional! Mesmo assim, é inegável que a humanidade se encontra, desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada. Especialmente porque as dinâmicas do mundo, portanto, pertencem e são dominadas por aqueles que ainda não envelheceram demais.

E isso, poxa… isso não é legal — o que justifica minha mais nova e utópica proposta, que, assim exijo, deverá ser levada em conta no caso de, algum dia, o mundo precisar ser refeito, começar tudo de novo.

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Neste ponto, abandono a modéstia para anunciar que minha ideia é totalmente original e absolutamente viável. Além disso, é de facílima execução pelo Criador (que, como sabemos, tem um portfólio pra ninguém botar defeito, e ainda por cima é onipotente).

Não será preciso mexer em muita coisa na natureza do homo sapiens, não, nada disso. Em respeito à inevitável finitude da vida como a conhecemos, não ousaria reforçar a saúde universal da humanidade, nem nossas potências. Entendo que a debilitação natural do corpo e da mente, assim como a gradativa indisposição generalizada, que tem como consequência a aceitação de tudo isso, são mecanismos gentilmente programados para que nos desliguemos, aos pouquinhos, da vida terrena.

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Eis então, e finalmente, o pulo do gato para um novo planejamento da nossa espécie (lembrando que meu projeto buscou criar uma vantagem significativa para os mais idosos, sem afetar o ciclo de vida humano ou causar desequilíbrios de quaisquer ordens):

Um perfume natural unanimemente sublime; suave e ao mesmo tempo enfeitiçante, que a cada dia irá se tornando ainda mais agradável. Mas não é só isso: tal elixir funcionará também como um purificador do ar ambiente. Trará frescor, bem-estar — e até paz.

Eu explico. Na minha nova versão do ser humano, já por volta dos 35 ou, no mais tardar, aos 40 anos de idade, passa a ser perceptível o comecinho da produção, pelo organismo, de um perfume natural — que, progressivamente, anula nossos odores corporais característicos. Aqueles que a gente se habituou a detestar. 

Sublinho que será impossível replicar tal fragrância na indústria, da mesma forma que não se pode fabricar um pôr do Sol, ou um tatu-bola. Enfim, uma essência continuamente fresca, equilibrada, na medida certa. Exclusiva para cada pessoa e fascinante para todas elas. 

Dessa forma, aos 50 anos de idade, todos seriam dotados de uma virtude incrivelmente sedutora:

“Olha só como o fulano envelheceu: está calvo, enrugado e desgastado. E que cheiro maravilhoso tem esse fulano!”

Seria mais ou menos assim.

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Por volta dos 65 anos, a coisa já ficará seríssima. Uma senhora que chegar à sua janela no segundo andar atrairá atenções e encantos de todos os que transitarem por ali. Bebês desejarão pendurar-se nela. Seu marido nunca pensará em trocá-la por uma mais jovem. Todas as noites dormirão agarradinhos e, daquela fusão de idosos no leito conjugal, emanará o mais perfeito aroma de todas as flores da galáxia.

Um senhorzinho de 80 anos causará alvoroço toda vez que pisar fora de casa, apoiando-se em sua bengala. No meu mundo ideal, esse vovô nunca está sozinho. Os jovens param para conversar, ouvir seus conselhos, sentir sua fragrância que tranquiliza e inspira. Seus filhos e netos o visitam todos os dias, fazem mimos e dão abraços a todo instante. Aspirando aquele perfume, sentem-se como que obtendo uma energia inexplicável.

Sobrarão vagas para os idosos que desejarem trabalhar. As mais requintadas lojas terão um ou dois anciãos sentadinhos, num cantinho, em um confortável sofá — climatizando a atmosfera local, suavizando o ambiente, atraindo clientes. Bares mais simplórios contratarão senhores e senhoras para ficarem ali, como bem quiserem estar, anulando o cheiro de cerveja velha e a presença de moscas.

Os governos dos países que tiverem mais dinheiro disponível prospectarão pessoas cada vez mais idosas. (Cheguei a imaginar uma corrida silenciosa disputada pelos Estados Unidos e a União Soviética, em que as potências se empoderariam quanto mais atraíssem cidadãos centenários).

E por falar em poderio, reuniões entre veteranos de guerras antigas serão como espetáculos de essências naturais, bem como encontros de ex-colegas aposentados e decanos de toda ordem, além de bailes da terceira idade, serestas e shows do Roberto Carlos (pressupondo, obviamente, que Roberto Carlos siga sendo o cantor favorito dos idosos no mundo hipotético que descrevo).

Consultórios especializados oferecerão terapias de aroma, visando ao relaxamento e à cura, em recintos onde se convive e se respira com idosos. Nas cidades mais culturais, serão promovidos festivais de imersões olfativas, reunindo protagonistas que, de tão velhinhos, mal conseguirão entender o que se passa...

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Registro e encerro aqui, por ora, meu esboço que, indubitavelmente, vai aprimorar a reescritura do mundo, no caso em que ela venha a se fazer oportuna — lembrando que coisas absurdas podem acontecer, é bom estar sempre atento.

Se o dia desse absurdo enfim chegar, sugiro, a quem puder ou souber dar encaminhamento à instância competente, que o faça, com independência, ou que busque minha consultoria na infinita grande rede onde ninguém está escondido.

É isso.