É inegável que a humanidade se encontra,
desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada
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Pergunte a um avestruz o que acontece, desde que o mundo é mundo, com as pessoas que, em vez de morrer, envelhecem e vão envelhecendo mais e mais.
Um avestruz, ou até mesmo um bode, saberá lhe dizer que a inteligência de um velho fica lenta, assim como o metabolismo. A visão embaça, a surdez ataca. O sono é mais difícil, o fôlego inexiste. Os músculos e ossos enfraquecem, a pele murcha, os dentes descolam. O ânimo esmorece, as doenças ficam recorrentes.
Dores, simplesmente, emergem, não se sabe de onde.
A mobilidade enferruja. A memória falha. As esperanças arrefecem. A solidão faz companhia. E muito mais.
Dores, simplesmente, emergem, não se sabe de onde.
A mobilidade enferruja. A memória falha. As esperanças arrefecem. A solidão faz companhia. E muito mais.
Em contrapartida, na maior parte dos casos, a velhice contempla seus indivíduos com uma reserva de serenidade, que vem do desapego, que aplaca a ansiedade e traz sossego. Poxa, isso é realmente bem sensacional! Mesmo assim, é inegável que a humanidade se encontra, desde sempre, diante de uma injustiça brava, configurada. Especialmente porque as dinâmicas do mundo, portanto, pertencem e são dominadas por aqueles que ainda não envelheceram demais.
E isso, poxa… isso não é legal — o que justifica minha mais nova e utópica proposta, que, assim exijo, deverá ser levada em conta no caso de, algum dia, o mundo precisar ser refeito, começar tudo de novo.
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Neste ponto, abandono a modéstia para anunciar que minha ideia é totalmente original e absolutamente viável. Além disso, é de facílima execução pelo Criador (que, como sabemos, tem um portfólio pra ninguém botar defeito, e ainda por cima é onipotente).
Não será preciso mexer em muita coisa na natureza do homo sapiens, não, nada disso. Em respeito à inevitável finitude da vida como a conhecemos, não ousaria reforçar a saúde universal da humanidade, nem nossas potências. Entendo que a debilitação natural do corpo e da mente, assim como a gradativa indisposição generalizada, que tem como consequência a aceitação de tudo isso, são mecanismos gentilmente programados para que nos desliguemos, aos pouquinhos, da vida terrena.
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Eis então, e finalmente, o pulo do gato para um novo planejamento da nossa espécie (lembrando que meu projeto buscou criar uma vantagem significativa para os mais idosos, sem afetar o ciclo de vida humano ou causar desequilíbrios de quaisquer ordens):
Um perfume natural unanimemente sublime; suave e ao mesmo tempo enfeitiçante, que a cada dia irá se tornando ainda mais agradável. Mas não é só isso: tal elixir funcionará também como um purificador do ar ambiente. Trará frescor, bem-estar — e até paz.
Eu explico. Na minha nova versão do ser humano, já por volta dos 35 ou, no mais tardar, aos 40 anos de idade, passa a ser perceptível o comecinho da produção, pelo organismo, de um perfume natural — que, progressivamente, anula nossos odores corporais característicos. Aqueles que a gente se habituou a detestar.
Sublinho que será impossível replicar tal fragrância na indústria, da mesma forma que não se pode fabricar um pôr do Sol, ou um tatu-bola. Enfim, uma essência continuamente fresca, equilibrada, na medida certa. Exclusiva para cada pessoa e fascinante para todas elas.
Dessa forma, aos 50 anos de idade, todos seriam dotados de uma virtude incrivelmente sedutora:
“Olha só como o fulano envelheceu: está calvo, enrugado e desgastado. E que cheiro maravilhoso tem esse fulano!”
Seria mais ou menos assim.
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Por volta dos 65 anos, a coisa já ficará seríssima. Uma senhora que chegar à sua janela no segundo andar atrairá atenções e encantos de todos os que transitarem por ali. Bebês desejarão pendurar-se nela. Seu marido nunca pensará em trocá-la por uma mais jovem. Todas as noites dormirão agarradinhos e, daquela fusão de idosos no leito conjugal, emanará o mais perfeito aroma de todas as flores da galáxia.
Um senhorzinho de 80 anos causará alvoroço toda vez que pisar fora de casa, apoiando-se em sua bengala. No meu mundo ideal, esse vovô nunca está sozinho. Os jovens param para conversar, ouvir seus conselhos, sentir sua fragrância que tranquiliza e inspira. Seus filhos e netos o visitam todos os dias, fazem mimos e dão abraços a todo instante. Aspirando aquele perfume, sentem-se como que obtendo uma energia inexplicável.
Sobrarão vagas para os idosos que desejarem trabalhar. As mais requintadas lojas terão um ou dois anciãos sentadinhos, num cantinho, em um confortável sofá — climatizando a atmosfera local, suavizando o ambiente, atraindo clientes. Bares mais simplórios contratarão senhores e senhoras para ficarem ali, como bem quiserem estar, anulando o cheiro de cerveja velha e a presença de moscas.
Os governos dos países que tiverem mais dinheiro disponível prospectarão pessoas cada vez mais idosas. (Cheguei a imaginar uma corrida silenciosa disputada pelos Estados Unidos e a União Soviética, em que as potências se empoderariam quanto mais atraíssem cidadãos centenários).
E por falar em poderio, reuniões entre veteranos de guerras antigas serão como espetáculos de essências naturais, bem como encontros de ex-colegas aposentados e decanos de toda ordem, além de bailes da terceira idade, serestas e shows do Roberto Carlos (pressupondo, obviamente, que Roberto Carlos siga sendo o cantor favorito dos idosos no mundo hipotético que descrevo).
Sobrarão vagas para os idosos que desejarem trabalhar. As mais requintadas lojas terão um ou dois anciãos sentadinhos, num cantinho, em um confortável sofá — climatizando a atmosfera local, suavizando o ambiente, atraindo clientes. Bares mais simplórios contratarão senhores e senhoras para ficarem ali, como bem quiserem estar, anulando o cheiro de cerveja velha e a presença de moscas.
Os governos dos países que tiverem mais dinheiro disponível prospectarão pessoas cada vez mais idosas. (Cheguei a imaginar uma corrida silenciosa disputada pelos Estados Unidos e a União Soviética, em que as potências se empoderariam quanto mais atraíssem cidadãos centenários).
E por falar em poderio, reuniões entre veteranos de guerras antigas serão como espetáculos de essências naturais, bem como encontros de ex-colegas aposentados e decanos de toda ordem, além de bailes da terceira idade, serestas e shows do Roberto Carlos (pressupondo, obviamente, que Roberto Carlos siga sendo o cantor favorito dos idosos no mundo hipotético que descrevo).
Consultórios especializados oferecerão terapias de aroma, visando ao relaxamento e à cura, em recintos onde se convive e se respira com idosos. Nas cidades mais culturais, serão promovidos festivais de imersões olfativas, reunindo protagonistas que, de tão velhinhos, mal conseguirão entender o que se passa...
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Registro e encerro aqui, por ora, meu esboço que, indubitavelmente, vai aprimorar a reescritura do mundo, no caso em que ela venha a se fazer oportuna — lembrando que coisas absurdas podem acontecer, é bom estar sempre atento.
Se o dia desse absurdo enfim chegar, sugiro, a quem puder ou souber dar encaminhamento à instância competente, que o faça, com independência, ou que busque minha consultoria na infinita grande rede onde ninguém está escondido.
É isso.