segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O cara padrão

No meu terceiro ano de faculdade em Viçosa, apareceu por lá uma caloura chamada Dayana. Simpática, divertida, sorriso fácil.

Não chegamos a ser grandes amigos, mas por alguma razão eu realmente gostava dessa garota.

E você sabe como é a predisposição dos jovens universitários à paquera: quase em tempo integral, são sentinelas que vigiam quaisquer ambientes na tentativa de detectar potenciais pretendentes. Como decorrência natural desse comportamento, nas idas e vindas entre o pavilhão de aulas e o boteco, não era raro que lábios e corações diversos se testassem, de forma casual e frenética. Girava assim, sem cessar, a engrenagem da sedução na cidade universitária. Dia sim, o outro também...  

Mas quanto à Dayana – fui levado a retomar – nunca, em dois anos de convivência, havia sabido de marmanjo algum que tivesse logrado sucesso em cortejá-la. Talvez fosse demasiado rigorosa no aspecto da pegação; ou apenas discreta, reservada. É possível até que tal impressão de intocabilidade não passasse de fruto da minha desatenção. Enfim, por algum tempo, esse mistério me intrigou.

Até o dia em que a vi aos beijos com o Glauco.

Glauco cursava Economia e era aquilo que se pode chamar de um legítimo protagonista da bebedeira. Dava show nas baladas, sempre muito eufórico, de olhos marejados e avermelhados pela cachaça. 

Não apenas por isso, parecia-se muito comigo; éramos fisicamente parecidos. Alguém, não sei quem, um dia notou a semelhança e eu, que sempre fui meio idiota, gostei da ideia de ter um sósia por aí.

Não chegamos a ser grandes amigos, mas eu gostava bem desse rapaz. 

Quando então o vi de chamegos com a referida caloura, veio-me à tona um raciocínio meio sem cabimento: “Não é que eu e ela formamos um belo casal?”. Juro que pensei isso. E emergiram também alguns planos.
Percebi que poderia ser conveniente e divertido aprontar e sujar o nome do Glauco, partilhando, pois, com ele, a queimação de filme. Fazia minhas estripulias pela cidade, e se me perguntassem o nome: “Sou o Glauco da Economia”. De certa forma, era como usar trajes da invisibilidade. 

Por um tempo, não sei quanto, tal estratégia de autopreservação foi eficaz. Mas tudo desandou quando meu gêmeo, que não era bobo nem nada, passou a fazer a mesma coisa. Libertos das amarras da identidade, tornamo-nos ainda mais propensos a arrumar encrencas. Sempre, secretamente, botando a culpa um no outro.

Conta-se até que, certa vez, teriam me visto namorando pelado com uma mocinha em um canto de um boteco onde passava a estreia do Brasil na Copa de 2006. Blasfêmia! Aposto que foi o safado do Glauco!
Essa introdução, com a qual acabei me empolgando, deu-se apenas para ilustrar o quão rica pode se tornar a história de um indivíduo quando ele descobre que tem clones espalhados pelo mundo.

Isso ocorre tão frequentemente comigo que cheguei à conclusão de que sou um cara basal. Ou seja, sou uma espécie de padrão de feitura física de humanos do sexo masculino, a partir do qual os demais rapazes vão configurando seus traços peculiares. 

Uns dão uma melhorada, uma encolhida ou esticada, pegam uma cor, crescem o nariz ou o pé. Mas tudo começa comigo, exatamente como sou. Portanto, quanto menos o sujeito foge do padrão básico, mais sua lataria se assemelha à minha.

Graças a essa particularidade, quase todos os dias sou confundido ou visto em dezenas de lugares ao mesmo tempo. Quando criança, fui botado por engano no carro pela mãe de um tal João Vítor, na porta do colégio. Também já fui chamado de papai uma meia dúzia de vezes. Ainda hoje, ganho caronas e abraços inesperados. Até cachorros me seguem pelas ruas, iludidos.

Nesse sentido, foram inúmeros os esclarecimentos que já tive que prestar. 

_ Não, não te conheci em um pub londrino. Nunca nem andei de avião, minha filha.
_Não, nunca joguei nas categorias de base do Bragantino. Até fui um promissor lateral direito. Cruzava bem, mas interrompi minha carreira na sexta série.
_Não, não estive em um quiosque gay em Cabo Frio no réveillon de 2010.
_Ah, me conhece de algum lugar? Pode até ser...

Dia desses, um amigo me mandou a foto de um cara igualzinho a mim, com quem fazia um curso em Fortaleza. Aí descobri que até a falha no meu bigode é padronizada.

Mais recentemente, circulou na internet uma foto em que eu, supostamente, tocava contrabaixo em uma banda de rock. Mas quem me conhece sabe que entendo tanto de contrabaixo quanto sobre embreagem de foguete. Ainda assim, amigos íntimos, colegas de todas as gerações e até meu pai veio se queixar por não tê-lo chamado ao show.
E o pior está por vir. Soube que o Glauco está morando atualmente em Belo Horizonte. Coisa boa isso não é. Indício de confusão.

Bom, sem mais delongas, o recado está dado. Se por ventura me flagrarem explodindo um caixa eletrônico, saindo do motel com um travesti ou tirando meleca do nariz, saibam que é enorme a possibilidade de ser obra de outro cara, muito parecido comigo.

Se me virem vomitando no banheiro de um casamento, comercializando drogas, pichando ‘morte aos tecnocratas’ no viaduto; é sério, não fui eu.

Se isso acontecer, minha gente, melhor deixar avisado de uma vez: Foi o Glauco da Economia!

PS.: Bem, na verdade estive mesmo no quiosque gay.
Mas entrei lá por engano. 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Paradigmas do menino Eberclei

O jovem Eberclei nunca havia saído dos limites de uma cidadezinha fuleira do interior de Goiás, quando, aos 17 anos, veio estudar engenharia em Belo Horizonte. 

Achou bem legal a cidade urbanizada. Em sua terra natal, era muito comum caminhar lado a lado com vacas ou galinhas na estrada que levava ao colégio. Achou bacana ver tantas garotas bonitas na faculdade e nas ruas.

Era bem tímido, e desconfiado como todo bom capiau. Não deveria estabelecer, tão cedo, alguma amizade na metrópole. 

Ah, mas das meninas ele realmente gostou. 

O sotaque era bonitinho e até a futilidade que detectou nas mais patricinhas era, para Eberclei, interessante. A primeira tentativa, porém, de dialogar com uma colega de classe foi um fiasco: apresentou-se, e à primeira reação da menina, ele descobriu que seu nome de batismo era ridículo. “Putz! Sério? Eberclei?”. Decidiu que não iria às calouradas.

E o rapazote passou por algumas aventuras na cidade grande. Havia muita coisa nova a ser assimilada. Pegar o metrô, subir escada rolante, usar cartão de crédito...

Mas de matemática Eberclei entendia! E graças a essa virtude passou em uma seleção para estagiário. O jovial Eberclei ingressou então no staff de uma imponente montadora de automóveis. Na prática, recebeu a atribuição de trazer o cafezinho para os engenheiros.

...

Sem balbuciar, jamais, uma só palavra durante o expediente, Eberclei se esforçava para aprender sobre o ofício do qual pretendia ser detentor dali a alguns anos. Discreto, observava os profissionais na lida diária. Ou melhor, observava a engenheira Eliza.

Um metro e setenta e cinco de altura (dez centímetros a mais do que ele, sem contar o salto). Cabelos negros, lisos e longos até a cintura. Morena, olhos pretos que, à luz, ficavam quase da cor de grafite. Unhas, cílios e brincos impecáveis, mas sem batom. Elegante, esbelta, feminina. Exalava um agradável perfume que sempre trazia uma flor cheirosa à memória de Eberclei. Aparentemente, trinta e dois anos e seis meses de idade – calculava ele. No dedo anelar da mão direita, uma aliança de noiva.

Depois de uma semana convivendo na mesma sala, ela enfim notou a existência do novo estagiário. A voz encantadora, como se fosse uma sereia, quebrou o gelo: “Oi menino, nunca te vi aqui. Qual o seu nome?”.

“Éber.” – respondeu prontamente. Já havia se planejado a respeito.
Eberclei então monitorava cada aspecto referente à chefe que idealizava. O decote sempre discreto nas costas, a escrita canhota, a piscada lenta, sugerindo que seus olhos se ressecavam quando expostos ao ar condicionado. As panturrilhas rigorosamente da mesma espessura. E aquele anel dourado, símbolo maior do iminente compromisso matrimonial, que fazia desmoronar o mundo inteiro sobre a cabeça de Eberclei.

Ao certo, a dama estaria prestes a se casar com um endinheirado homem de negócios, que usa terno e relógio. Ou um jogador de futebol, daqueles que adquirem prestígio e erguem vasto patrimônio ainda jovens.

Tal gavião teria sido o remetente daquele buquê de rosas recebido por sua deusa, de surpresa, em pleno ambiente de trabalho. Era para atendê-lo ao celular que Eliza saía de fininho, sorridente, quando ouvia o aparelho tocar uma canção de Caetano. Que martírio era aquilo!

O estudante solitário passou a ficar obcecado. Sua medíocre rotina se resumia então em investigar o que pudesse sobre aquela mulher. Espionava-a nas redes sociais. Beijava o copo usado por ela, deixado na pia da cantina. Uma vez quase foi surpreendido cheirando o agasalho da mulher, largado sobre a poltrona. Só pensava nela o dia inteiro. A paixão platônica se transformava em uma doença.
Certo dia, Eberclei ficou até as dezoito horas na firma. Havia recentemente largado os cafezinhos, sendo promovido a carimbador de documentos, e o serviço ficou mais pesado. Nessa ocasião, pôde bisbilhotar a rainha de seus sonhos na saída do trampo.

Eliza se despediu de todos, do diretor à faxineira, com a delicadeza que lhe era peculiar. Desceu as escadas apressadamente, parecia que alguém a estava a esperar. Por instinto, o estagiário foi atrás, mesmo ciente de que levaria uma apunhalada no peito se desse de cara com o bonitão. Teria cabelos levemente grisalhos, voz grave, dirigiria um carrão. 

“Desgraçado...”.

Eberclei examinava toda a trajetória, sorrateiramente. Dali a poucos metros, havia, de fato, um belíssimo automóvel preto, com cabine dupla e carroceria, parado. O garoto nem conhecia o nome do modelo. Eliza caminhou para lá, saltitante de saudade. 

"Maldito!".

Nesse momento, um súbito ódio tomou conta da até então inofensiva personalidade do rapaz. Impulsivamente, ele a seguiu. Quem visse a cena ficaria assustado, mas a rua era deserta e já começava a escurecer. Eberclei estava ofegante; o olhar marejado e convicto. Caminhava com passos fortes.

A moça se aproxima do veículo estacionado. O estagiário a persegue, prestes a alcançá-la, com um ar sinistro, animal. As mãos cerradas, empunhando apenas uma caneta do escritório.  

A porta do carona abre devagar e Eliza se joga nos braços do piloto. Eberclei agora chega de mansinho, com bastante cautela.

A musa está de costas. O estagiário observa mais uma vez o decote sensual. Tem raiva, e segura forte a caneta. Já é possível ver quem está ao volante, beijando vorazmente sua donzela protegida.
Na poltrona do motorista, uma lindíssima loira, cabelo até os ombros, usando saia; foi só o que deu para constatar. Eberclei contempla a cena, paralisado. Diante de seus olhos estão duas beldades, usando maquiagem. Nada de gravata, charuto, barba, bigode...

O vento sopra e traz até Eberclei o cheiro bom de xampu feminino. Ele fica pasmo, imóvel. "Mas... como assim?" — questionava sua alma, surpresa.

De um jeito inesperado, a fincada amarga do ciúme anulou-se. Ebreclei, que navegava num turblento oceano de novidades desde que aportara na capital, renovava seus paradigmas naquele exato instante.

"Se não há rivalidade masculina, não há motivos para me sentir derrotado, certo? É assim no reino dos leões, dos búfalos... dos pavões..." — conjecturava o espírito angustiado do rapazinho.

Jogou fora a caneta e regressou calmo, o menino Éber.