sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A lição que deu o Jonas


Solitário, o céu deprimia-se, uma vez que acinzentado: um céu inglês em pleno outubro viçosense. O filme da minha existência parecia-me então passar inteirinho diante dos olhos. Coisa bem semelhante àquilo que sucede quando a gente morre – e morre de uma vez por todas. Dizem que é assim.

Andejando lento, meu horizonte era o prédio das Humanidades, que ficava longe, bem longe. Acho que eu nem queria mesmo chegar ao destino, não.

Sentia-me como na iminência de um duelo sangrento com o professor Jonas Queiroz em seu gabinete. Isso porque o danado não me aprovara, no semestre regular, em sua disciplina, que tratava da formação histórica brasileira. A missão daquele dia era, pois, consumar sua prova final – aquele exame indesejado, que fazemos nas férias, quando não há mais nem um paralelepípedo na universidade, e que pode determinar a falência total de nossos órgãos.

Todos sabemos que quando você caminha sozinho no campus, e vai tentar sua última cartada na prova final de uma disciplina, os cachorrinhos vadios de Viçosa e toda a Via Láctea cochicham, no interior da sua mente, que você é um indigno ou, como queira, um desprezível filhadaputa. Afinal, nem mesmo os insetos merecem fazer prova final, durante as férias, no campus. Debaixo do céu solitário e cinzento. Em pleno outubro.

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A memória errante caçava, então, desvendar as circunstâncias que me haviam conduzido àquela situação. Nesse ponto, digo e reafirmo que eu fora injustiçado, já que havia me preparado como um atleta para a terceira avaliação regular do professor Jonas, depois da qual todos os filhos de Deus se tornariam aptos a gozar suas férias. Juro que meu teste havia sido irrepreensível! Escrevi quatro folhas das quais babava o conhecimento, frente e também verso. Juro que eu sofrera a maior das injustiças! Isso eu juro pelo amor dos meus dois miseráveis filhinhos! E juro nesses termos para deixar bem fiável o meu juramento.

Ainda assim, como o leitor já percebeu, Jonas Queiroz, tão feroz, não me aprovou. Meu castigo foi a compulsória e maldita prova final.

Justamente por causa disso, naquele dia nublado eu estava possesso de raiva quanto às alegações de um tal Gilberto Freyre. Esse autor, se hoje não me falha a memória, falava sobre coisas belas que prevaleciam no Brasil-colônia, como o ar da África, um ar quente e oleoso, que amolecia as durezas germânicas, corrompendo a rigidez moral... Como bem sabemos, essa conversa é típica de um legítimo vigarista ou, se o leitor preferir, um legítimo cafajeste. Determinado em ser aprovado no mais curto dos prazos, estudei a ponto de saber tudo sobre o assunto.

Ainda assim, Jonas Queiroz, tão insensível algoz, não teve piedade. E minha pena era estar solitário em Viçosa durante aquela tarde sombria, submetido à chance derradeira, também conhecida como prova final.

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Divagava eu sob o céu pesado enquanto seguia como um bovino a caminho do abate. Ou como um crucificado a caminho da crucificação. O corolário do triunfo do perverso docente sobre toda a humanidade. Refletia, entre outras coisas, sobre a revolução técnico-científica, e até onde ela nos levaria. Meditava sobre a burguesia, a aristocracia, o pacto colonial.

Sobre os olhos tropicais de Jaqueline.

Ruminava eu, naquele contexto, a respeito da maneira como subsistira a colonização, a escravidão e, claro, o monopólio comercial. E a respeito da falta de caráter de alguns estudantes, da qual se queixara Jonas Queiroz – sempre tão atroz. A Inconfidência Mineira, a Revolta da Vacina, a Revolta de Canudos.

Revoltado, eu me recordava dos lábios carinhosos, da voz penetrante e da pele branquinha de Jaqueline.

Quando você anda no campus deserto, indo fazer, sozinho, uma prova final, você pensa nos colegas que já foram premiados e estão longe, de férias. Você procura no firmamento, por trás das nuvens, um satélite que transmita a onisciência deles para você. Mas isso não passa de uma tolice, posso garantir.

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Desconjuntado, então, adentrei o edifício do Departamento, na justa hora agendada pelas partes. Lá estava Jonas Queiroz, de expressão tenaz, como uma serpente à espreita de um descuido da sua presa. Também lá estava uma mulher que havia sido minha professora no ensino médio.

"Ah, esse garoto é peça rara. É um bom menino".

"É mesmo? Pois pergunte a ele o que faz aqui".

A ironia de Jonas Queiroz, mais seu silêncio fugaz, quase despedaçou minhas esperanças.

Entregou-me a avaliação. Eu o mirava feito um boxeador. Ele se esquivava, seu olhar ricocheteava pela sala. Que diabos seriam as limitações do conceito de família patriarcal? E quanto ao padrão de privacidade de Sevcenko? Salvo engano, esse sujeito é centroavante do Chelsea... Teria o jogador, fora das quatro linhas, um padrão de privacidade diferente dos demais mortais? Quais foram as pressões sofridas pelo antigo sistema colonial para a emancipação política? Opa, essa eu sei mas...

"O tempo já foi", encerrou Jonas Queiroz, cruelmente veloz.

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Permaneci apreensivo durante alguns dias, e devo informar que passei nessa prova final, com 75% de nota, já que respondi três das quatro questões, com maestria, e deixei a outra em branco. Devo dizer também que Jaqueline, que povoava meu pensamento em outubro de 2006, a ponto de tirar-me o foco das demais coisas da vida, segue sendo muito graciosa, e hoje é uma cantora famosa.

Por fim, devo esclarecer que não tenho filhos e, por isso mesmo, não considerei que houvesse problema algum em jurar por eles – seres, assim, fictícios – que eu fora vítima de um julgamento vil e impertinente do professor Jonas, no contexto provisório em que ele me desaprovara no conjunto das avaliações regulares de sua disciplina.

A bem da verdade, ao longo de uma conversa franca e proveitosa que estabelecemos em seu gabinete naquela tarde da prova final, Jonas me ensinou sobre a importância de um conceito que, segundo ele, era comumente negligenciado, tanto por estudantes, quanto por vestibulandos ou concurseiros: a objetividade.

Responder àquilo que está sendo perguntado – definiu ele – em vez de encher quatro folhas com coisas que não estão sendo perguntadas.

O ensinamento pode parecer simples ou banal, mas atesto que é valioso demais, e capaz de nos livrar de armadilhas ao longo da vida, em diversas searas. Devo ao Jonas, portanto, parte das coisas bem sucedidas que conquistei por aí.

Essa foi a lição que deu, pela qual, muito grato, agradeço, o professor Jonas Queiroz – definitivamente, um homem sagaz.