terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Parto perfeito

Hipermercado em horário de pico é tão tumultuado quanto o trânsito na capital. Tão estressante quanto uma redação de jornal diário. Nessa hora, todos voltam do trampo e vão às compras, inclusive eu. 

Logo na entrada do Extra, mendigos armam o cerco para filar uma esmola. Os únicos carrinhos de compra desocupados têm as rodas empenadas ou frouxas.

Não há ninguém para informar onde ficam as barras de cereal, nem onde se pesa os chuchus. Uma velhinha gulosa briga comigo pelo último sucrilhos da prateleira. E vence. A fila no caixa é comprida por demais, o sistema dá pau e o freguês à minha frente resolve passar três carrinhos abarrotados, um barril de botar lixo, uma escada e quatro pneus.

Por falar em pneus, não tenho carro. Tampouco paciência para voltar ao hipermercado e vivenciar tudo de novo. Portanto, carrego nos braços todos os mantimentos do mês de uma só vez. Não respeito o limite de 20 kg suportado pela sacola. Assim que deixo o estabelecimento, ela começa a se romper. Precisarei carregá-la apoiando o fundo com uma das mãos ao longo de 2 km.

Esse calvário acaba me deixando confuso, então escolho a saída errada do estabelecimento e desemboco no quarteirão inverso. Terei de contornar a quadra para seguir rumo ao meu lar, o que alonga ainda mais o percurso.
Enquanto vou me contorcendo ao segurar a imensa sacola de compras prestes a arrebentar, disponho de todos os palavrões de que tenho conhecimento para lamentar pelo início de noite desastrado. Suado, cansado, indignado, dolorido, puto da vida!

Mas deparo-me, de súbito, com algo que me deixa perplexo.

Fico paralisado, mirando o cenário familiar. Um filme me passa pela mente. Visualizo cenas remotas e com pouca nitidez. Recordações há muito adormecidas vêm à tona. É a portaria de um hospital. O letreiro informa: HOSPITAL SEMPER.

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Há alguns anos, eu vira essa mesma portaria pela primeira e única vez. Foi quando deixava o recinto onde ficara internado durante cerca de uma semana. O episódio remonta-se em minha memória com muita precariedade. Na ocasião, eu me recuperava de um traumatismo craniano grave que me deixara em coma por 48 horas, e de inúmeras escoriações. Não batia muito bem da cabeça. Tinha apenas doze anos de idade.

Ao rever a fachada, lembrei-me das minhas impressões naquela distante tarde de sábado. Sentia alívio. Embora não estivesse totalmente recuperado quando deixei o leito hospitalar, preferia receber alta do que ser um paciente internado. No linguajar de hoje, trocava então meu status.

“Bora Deus. O pior já passou.”

Tudo ainda era muito confuso para mim. Eu não me recordava do acidente que me trouxera ao hospital da capital. Felizmente, a cena havia sido apagada do disco rígido. Nem fazia muita ideia do sofrimento pelo qual havíamos passado minha família e eu. Disseram-me que fui atropelado.

_Mãe, eu tô sonhando? Toda vez que acordo, te vejo do meu lado.
_Foi um sonho ruim, filho, mas já passou, graças a Deus.
_Como assim? Quê que aconteceu?
_Você foi atropelado por um carro quando andava de bicicleta, filho.
_E como tá minha bicicleta?
_Sua bicicleta estragou toda. A roda virou um oito. Joguei fora.

Voltei a dormir, pensando: “Essa minha mãe... sempre exagerada!”.

Recebi a visita do meu tio Tião.

_Filho... psiu... filho... você reconhece esse tio?
_Ah mãe... tio Fernando. – e me virei para dormir de novo.

Tinha dificuldade para articular as palavras. No fundo eu sabia que era o Tião. Eles pensaram que eu tinha ficado doido.

“Que preguiça de pensar e de tentar falar...!” – confabulei indignado.
Novamente diante do Hospital Semper, a noite caía e eu nem sentia mais o peso da sacola e a dor nos antebraços. Retomei outros instantes raros concedidos pela memória. A primeira vez que andei de elevador, e de cadeira de rodas. A primeira vez que vi uma máquina onde a gente enfia dinheiro e dela sai Coca-Cola. O cheiro fortíssimo da comida do almoço.

_Mãe, quê isso? Tô tão doido que tô comendo até berinjela...

O quarto branco, os enfermeiros me levando para o banho. O futebol de areia na TV.

“Esse pessoal que eu nem conheço me vendo peladão todo dia...”

“Esses caras na praia e eu aqui de cama, sem saber nem o porquê. Que bosta.”

Falei com minha irmã, criança de nove anos, pelo telefone. A boca não obedecia mesmo ao que o cérebro queria dizer. Depois soube que ela chorou ao me ouvir conversando com aquela moleza. Chegou uma cartinha sua.

Permanecia acordado pouquíssimos instantes por dia. Não sentia dor, só um soninho constante. Ouvia o pessoal falando sério sobre minhas possibilidades de recuperação. Iam e voltavam de Monlevade para trazer alguém ou alguma coisa. Interessante: num piscar de olhos o fulano ia e já estava de volta!
As divagações duraram alguns minutos. Emocionei-me, fiquei também um pouco impressionado. O tempo, o senhor dos destinos. Ele avança, voraz, e o que resta após sua passagem são só as lembranças. Muitas vezes, nem elas. Falando nisso, quanto tempo se passou mesmo...?

Bem, vamos lá: janeiro de 1998. No dia em que voltei do Semper, completava-se um mês desde que eu havia ganhado a bicicleta de presente de Natal... logo, dia 24 de janeiro. Que dia é hoje mesmo? Ops! Caralha! Hoje é 24 de janeiro de 2012. Faz 14 anos! Na risca!!!

Depois dessa constatação, eu, que já era um rapaz boquiaberto, fiquei pasmado de vez. Após ter estado entre a vida e a morte, nasci de novo, em 24 de janeiro de 1998. Hoje é, pois, meu aniversário de 14 anos! 

E cá estou. Voltando do meu trampo, de bermuda nova. Trabalho somente à tarde e posso ir de bermuda. O emprego é bom, concursado, de jornalista. Carrego um fardo pesadíssimo, mas são apenas as compras do mês. Estou exausto. Mas é só chegar em casa, deitar, abrir uma latinha e fico novo, de novo.

Cá estou. Pensei em entrar para rever o interior do Semper, mas nem rolou. Basta de observá-lo. Não estou mais zangado por ter saído pela porta errada do hipermercado. Pensando bem, acho que essa maluquice de ficar frequentemente perdido, entrar na rua errada ou sair de tal lugar pelo lado mais difícil pode ter sido a única sequela do acidente.

Antes de partir, uma olhadela para o céu.

“Bora Deus. Nasci de novo e o parto foi perfeito. Ou quase.”