terça-feira, 23 de junho de 2015

José Justo, o abençoado

Este conto é sobre o fazendeiro José Justo, que de justo não tinha nada.

Desde a primeira infância, José Justo se acostumou a trapacear descaradamente. Na brincadeira de esconde-esconde, tapava os próprios olhos deixando delgada fresta entre os dedos médio e anelar, através da qual tinha absoluto domínio visual de todo o campo observável. Descortinava assim, em poucos instantes, os esconderijos dos coleguinhas. Obtinha satisfatório desempenho no colégio, logrado, invariavelmente, à custa de maquiavélicos esquemas de cola. José Justo também mentia para a mãe, surrupiava trocados na caixinha da igreja, furava filas, enganava as namoradinhas, fraudava até exame de vista.

De pouquinho em pouquinho, José Justo ergueu um império na pequenina cidadezinha, e toda a sua conquista é devida à malandragem natural que Deus lhe deu. Sonegou milhares em impostos na comercialização do café cultivado em sua fazenda. Misturava água aos litros de leite tirados das vacas, antes de vendê-los. Ludibriava até seus próprios bovinos, mesclando farinha de trigo à ração dos animais! Dava golpe em velhinho, mendigo, cego ou em quem quer que fosse. José Justo tornou-se rico e influente no lugarejo. Ficou também famoso por causa de suas picaretagens. (...)
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Na pequenina cidadezinha também vivia outro cidadão influente. Era o locutor de rádio Bento Batista; por sua vez, irrefutavelmente íntegro, admirado, respeitado. Não havia quem não o conhecesse pelo bordão que se popularizou na região:

_A voz tenra e amiga de todas as manhãs!

Bento Batista era benquisto por todos e por isso foi convidado a batizar centenas de crianças nascidas na cidade. Solidário, mantinha, com fundos próprios, uma creche e uma casa de repouso para idosos. Vivia com recursos básicos e partilhava o restante de seus rendimentos. Doou um rim e um pedaço de seu próprio fígado a distintos moribundos.

O radialista era um líder, venerado na comunidade. Gozava de tanto prestígio que dava conselhos ao padre e ao delegado. Fazia visitas à cadeia e conversava amigavelmente com presidiários perigosos. Da última vez em que lá esteve, convenceu a autoridade a soltar um tal ladrão chamado Pedro Furtado. “Ele se regenerou, será homem de bem” – garantiu Bento Batista. E não é que o rapaz tomou jeito mesmo? Hoje é conhecido carinhosamente como Pedrinho, e é competente pedreiro.

Por essas e outras, tudo aquilo que o radialista Bento Batista falava tinha valor de lei por aquelas bandas. (...)

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Mas voltemos ao safado do Zé Justo.

Era ano de eleições municipais, e cismou, o sem-vergonha, de querer ser o novo prefeito da cidadezinha. A princípio não teria chances, por conta de sua péssima popularidade.

Acontece que Zé Justo era ardiloso, daria seu jeito de eleger-se. Sorrateiramente, começou a comprar votos. Dava aos pobres pares de tênis, óculos escuros, relógios e toda sorte de bugigangas – tudo produto contrabandeado. Prometia empregos para famílias inteiras, em repartições que nem sequer existiam. Audacioso, tentou subornar seu adversário único no pleito, de nome João Machado, humilde lenhador. “Sou pobre, mas não sou corrupto” – cortou, convicto, Machado. A disputa haveria de ser limpa. (...)



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Quando chegou o mês de outubro, não se falava em outra coisa na cidadezinha.

“Cara de pau esse Zé! Deviam mandar matar!”, sugeriu Dona Severa.

“Daria tudo para ver o Zé derrotado e humilhado”, respondeu sua comadre, Dona Generosa.

“Não cabe a nós condená-lo!” – amenizava Dona Piedade.

“A eleição será correta e tranquila”, desconversava Seu Pacífico. (...)



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O único mesário, da única sessão eleitoral do município, era o Seu Albino, um bucólico pastor de ovelhas. Ele ficou branco dos pés à cabeça quando recebeu, na noite da véspera das eleições, a proposta de Zé Justo: “Um milhão para multiplicar as cédulas com votos a meu favor”. A oferta era sedutora demais, não havia como declinar. Seu Albino encheria o bolso de dinheiro e sumiria no mundo antes do cabo da apuração.

Na manhã seguinte, logo bem cedinho, foram chegando os votantes da cidadezinha. O Ferreira, cabra gente boa, praticava boca de urna ostentando bandeirinhas de seu candidato preferido. Feitas em casa, com santinhos afixados em espetos de pau. Tudo por ali era muito pitoresco.

Antes do meio-dia, já não faltava mais ninguém para votar. Começou então a contagem.

Estranhamente, foram depositadas cerca de três mil cédulas na única urna disponível, sendo que a cidadezinha tinha pouco mais de dois mil eleitores. O Jacinto, rapaz de sensibilidade aguçada, ficou desconfiado. “Sinto que há alguma coisa errada”, pressentia ele. Mas Jacinto não faria alarde. Essas eleições seriam favas contadas. Mesmo lançando mão das suas maracutaias, o cretino do Zé haveria de perder. (...)

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À noitinha, todos os moradores da pequenina cidadezinha sintonizaram seus radinhos no padrão AM, apreensivos quanto à revelação do candidato vencedor. E especialmente ansiosos porque isso seria mediado pela voz gostosa e afável de Bento Batista. Às dezenove em ponto, o queridíssimo e corretíssimo locutor entrou no ar. O resultado do pleito, que há pouco consultara, com curiosidade, em um papelzinho timbrado, era para ele assombroso e trágico. Em nome da imparcialidade jornalística, no entanto, o nobre radialista foi forçado a engolir sua frustração.

_ Boa noite, ouvintes! Aqui quem vos fala é a voz tenra e amiga de Bento Batista. Tenho em minhas mãos o saldo da apuração. E trata-se certamente de uma surpresa para todos. Pela diferença de apenas vinte votos, foi eleito o candidato José Justo de Jesus. Isso mesmo, podem acreditar: deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

Dona Margarida, que fechava o caixa na sua floricultura, de repente murchou de desgosto. “Eu ouvi direito? O vagabundo do Zé ganhou? E nosso amado locutor, por conta disso, avalia que Deus é justo?!”.

_ Isso mesmo, querido ouvinte! O Zé venceu. Por essa, ninguém esperava. Mas vemos agora que nada é impossível, porque deu Zé Justo. Deu Zé Justo!

O altifalante do aparelho vociferava e todos se espantavam. Naquele mesmo instante, um velho criador de pássaros, de nome Ícaro, ouvia à transmissão radiofônica no interior da chácara onde trabalhava. Estarrecido, Ícaro disparou pra casa, a fim de repercutir a notícia com a esposa. De tão apressado, por muito pouco não levantou voo. “Escutou isso, mulher? Como assim?! O pilantra do Zé vence e nosso adorado locutor atribui isso à justiça divina?!”.

Bento Batista ainda repetiu mais duas vezes ao microfone, reafirmando para seus milhares de ouvintes:

_Deu Zé Justo! Deu Zé Justo!

Depois sofreu um piripaque do coração e morreu ali mesmo, ao vivo.

Ainda com os ouvidos colados a seus aparelhinhos radiofônicos, e energizados pelo desespero, alguns anciãos, que vadiavam reunidos na pracinha, correram desembestados até duas esquinas adiante, a fim de acionar o chaveiro Xavier para que este desaferrolhasse a porta do prédio que sediava a rádio local.

Feito isso, Dona Socorro, socorrista do posto médico, pôde então subir, às pressas, as longas escadarias do imóvel, rumo ao estúdio de transmissão. Mas logo constatou, muito infelizmente, que não seria possível reanimar o acidentado, já morto. Milhares de espectadores acompanhavam pelo rádio, em tempo real, o fatídico bafafá que sucedia naquela sala. Doutor Nascimento, único obstetra do arraial, interrompeu uma operação de parto para chorar a perda, de joelhos ao chão: “Suas últimas palavras foram de agradecimento a Deus pelo triunfo do Zé... Que santo homem!”, louvava. (...).

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Naquela noite trágica, todos os munícipes compareceram ao velório de Bento Batista. Seu Valente era um dos mais abatidos, mas segurava, corajosamente, o choro. Dona Consolação consolava os presentes; distribuía lencinhos para que secassem as lágrimas. Enquanto isso, o Hilário fazia gracinhas para distrair as crianças, que estavam desoladas.

A figura mais lúcida àquela altura era Dona Aparecida, senhorita cuja presença era sempre muito marcante em quaisquer ambientes. Por sinal, foi ela quem tomou a palavra, emocionada: “Para honra do finado locutor Bento Batista, é nosso dever amar e respeitar o novo prefeito José Justo! De certo, Zé Justo fazia jus à confiança de Bento Batista, como este fez questão de nos demonstrar em seu derradeiro suspiro de vida!” – chorava a dama.

Tal ponderação tocou a consciência daqueles cidadãos, que se arrependeram de terem julgado com tamanha crueldade o fazendeiro José Justo. "Sim! Se era o preferido de Bento Batista, má pessoa não é!", murmuravam entre si.

Na lápide onde jazeu o corpo do idolatrado radialista Bento Batista, foi grafada sua última declaração enquanto encarnado: Deus é justo. (...)


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E foi assim que o fazendeiro José Justo teve a reputação transformada e seguiu nos braços do povo. Ainda que praticasse frequentes cachorragens como mandatário da cidadezinha, sua imagem pública mantinha-se inabalada.

“Abençoado seja! Não é sem razão que seu nome é José Justo!", orgulhavam-se, por ali. 

"Ora, temos cá um homem deveras justo; muito justo, honesto e bom!”, propagavam todos, principalmente o Seu Cícero – bastante reconhecido nas redondezas como sendo um sujeito sincero.