quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Meu amigo Bolota

Conheci o Bolota na segunda série do colégio. Era uma criança pacata, incapaz de fazer mal a alguém. Era ingênuo, tímido, além de gordinho, vesgo e gago. E usava aparelho nos dentes. Bolota era o alvo perfeito para a crueldade infantil hoje conhecida como bullying.

"Bolota", embora não deixe de ser um apelido cretino, foi o nome mais aceitável pelo qual o mal-acabado Bonifácio já fora chamado. Não que ele gostasse da alcunha, mas as outras criadas pela turma certamente queimariam ainda mais o seu filme. Por sinal, Bolota também não era muito simpático ao seu nome de batismo. Então ele aceitou numa boa: Bolota.

Bolota sempre fora um menino feio pra cacete, muito por conta da epidemia de acne que se instaurou precocemente em seu rosto. Para piorar, raramente cortava o cabelo, que tinha cor de ferrugem. Ele tinha incontáveis defeitos e o pior deles era ser muito vomitador. Quando obtia uma nota ruim na prova, ele vomitava. Se pisassem no seu pé, ele vomitava. E se rissem dele, vomitava de novo.

Mas, cá pra nós, eu sempre torci pelo Bolota. Gostava dele, até.

Bolota muito sofria com as chacotas da moçada, mas nem por isso deixava de estar junto dos outros garotos da classe. Afinal, exceto nós, ninguém mais na escola sabia de sua existência. As reuniões para trabalhos escolares em grupo eram sempre na sua casa, onde o lanche era melhor. Ele também tinha computador, playstation, piscina. E os irmãos do Bolota eram maneiros!

Eu o achava um bom amigo, o Bolota.

Enfim, crescemos, e durante alguns anos eu não tive notícias do Bolota. Pobre Bolota, tão bonzinho e tão desprezado... Cheguei a imaginar que ele tivesse passado sua juventude como um sociopata. Conjecturei, também, que tivesse vivido isolado em uma comunidade alternativa.

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Mas não foi nada disso o que aconteceu; recentemente me contaram todo o caso. Quando tinha lá seus dezoito anos de idade, Bolota, num belo dia, decidiu se matricular numa academia de musculação. A princípio, porém, nem gostou. Já no terceiro dia de atividade, pensou em desistir. Foi quando ouviu, pela primeira vez na vida, algo animador:

"— Me passa essa barra, FERA?"
Sim! Ele fora enfim tratado com respeito. Foi chamado de FERA pelo fortão da academia.

Esse foi o combustível para que Bonifácio passasse a se exercitar com afinco! Tomou alguns suplementos e drogas para catalizar o processo de reconstrução do seu corpo, sua imagem e sua personalidade. Com um ano de treinamento, tornou-se muito musculoso. Pouco tempo depois, passou a ostentar uma argolinha brilhante na orelha esquerda. E um piercing no mamilo direito. Começou a andar sempre perfumado, com gel no cabelo e topete impecável. Entrou na aula de violão.

A fase ficou mesmo boa quando ganhou de presente do pai um Honda Civic, pretão, lindo. E investiu mais dez mil reais em aparelhagem de som para o possante. Engatou o namoro com uma linda menininha, dessas que se apaixonam fácil.

Algum tempo depois, Bonifácio foi fazer faculdade no Triângulo Mineiro, e se apresentou à nova turma como Boni. Para aumentar sua popularidade, comercializava cocaína, LSD e outras coisinhas entre os estudantes. Ficou meio dependente quimicamente, mas isso era o de menos.

Boni ficou famoso, andava cercado de amigos e desfilava de carrão. Frequentava todas as baladas da cidade e, por isso, nunca se formou em Odontologia. Enquanto foi universitário, pegou mais de quinhentas mulheres. Não havia quem o desconhecesse. Era o terror.

Hoje em dia, ele tá sumido de novo, e muita gente na cidade universitária percebeu sua falta. Passará quatro anos na cadeia porque ficou muito doidão e quase matou um rapaz a garrafadas. Vai para o presídio assim que se recuperar numa clínica para viciados em cocaína. Antes, porém, tem de receber alta no hospital: dizem que apanhou feio de um marido enciumado. Ele também responde por crime de tráfico de drogas.

Uberlândia nunca mais foi a mesma depois de sua passagem por lá. Grande garoto!

Eu sempre soube que ele deixaria sua marca. Sempre acreditei no potencial de meu amigo Bolota!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estranhos no metrô


São, no máximo, quinze minutos de espera. E não há absolutamente nada para se fazer. Talvez por isso eu não consiga tirar os olhos de um estranho casal que, na estação Central de Belo Horizonte, aguarda a chegada do trem.

Ambos fumam, mas ela faz isso de forma frenética. Infla os pulmões com a fumaça tóxica, colore de cinza o ambiente em torno de si, e imediatamente traz de volta à boca o monte roliço de tabaco em chama branda. E sopra tudo de novo.

É magra, vestida de maneira básica. Nada de brinco ou maquiagem. Nariz um pouco grande, cabelos curtos e pretos, denotando liberdade e independência. Sua bunda tem um formato estranho, destoando da brasilidade das demais nádegas femininas presentes. Pode-se dizer que é uma moça bonita.

Ele, se não fosse gay, seria o namorado. Está despenteado, com a barba e bigode rebeldes. É o melhor amigo da mocinha. Cabelos cacheados e abundantes, discretos olhos azuis. Jeans e sapato de jovem. É gay mas não é afeminado.

Obviamente são jornalistas. Ou melhor, cursam a faculdade, mas jamais irão exercer. Serão pesquisadores, depois doutores, e, se as drogas permitirem que cheguem vivos à maturidade, irão lecionar aquilo que aprenderam. Nota-se que são socialistas convictos e ateus fervorosos. Não acreditam em espíritos, tampouco na família como instituição sagrada.

Ele é herdeiro de um bem-sucedido empresário paulista. Sempre adorou gastar dinheiro em baladas caras. Ao chegar em Minas, jogou fora as roupas de marcas famosas e passou a frequentar ambientes hippies. Hoje usa drogas em vez de beber cerveja. Tem cara de Sérgio, mas foi apelidado de Dark pelos amigos da faculdade.

Maria Cecília, durante a adolescência, namorou um skatista que pichava muros, para contrariar o pai. Veio para Minas Gerais fugindo da rigidez familiar. Tinha tudo do bom e do melhor no Paraná, mas hoje é mais feliz dividindo um apê de dois quartos com outras três garotas. Algo me diz que, se morresse hoje, ela iria para o inferno.

Entraram no mesmo vagão que eu. O casal que vejo pela primeira vez continuará dono da minha atenção. Agora eles pararam de se falar, o assunto esgotou. Sem motivo aparente, ele a abraça e beija seu rosto carinhosamente. Como eu já disse, é seu melhor amigo, gay.

Após meia hora de devaneios, o trem chega ao meu destino. Quase perco o ponto por causa dessas reflexões. Pelo visto, o casal vai descer aqui também. Sinto-me constrangido em caminhar lado a lado com os já tão íntimos desconhecidos.

O trajeto da passarela até o estacionamento parece não ter fim. Contenho o impulso de virar o rosto e continuar observando o casal de amigos, que pra mim já são bizarros. Ouço seus passos, sincronizados, e os imagino acendendo mais cigarros. Não percebo vozes, mas é inevitável confabular um diálogo entre eles, com um sotaque irritante qualquer.

Tenho pressa. Felizmente, minha namorada está à minha espera. Ela sorri de forma atípica.

— Oi Dudu! Quer carona?

Eu olho para trás e me surpreendo. Minha nossa! Como eu não havia reconhecido?! É o Carlos Eduardo, primo da minha namorada! Não o vejo há seis meses, quando tomamos uma cerveja no boteco de seu pai. Realmente tá mudado... o bigode cresceu um pouquinho.

Quem o acompanha é a sua noiva, a Silvinha. Formam um dos mais belos casais que já vi, nascidos um para o outro! Conheceram-se no Grupo de Jovens de Cristo, da paróquia aqui do bairro mesmo. Mas foi durante a faculdade de Direito que começaram a namorar. Formados há três anos, passaram no concurso da Defensoria Pública. Enfim juntaram uma grana e vão se casar. Deste ano não passa!

— Como você tá, meu peixe? Nem tinha notado a presença de vocês! Sabe como é... meia hora no metrô, a gente acaba cochilando...

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Do jeito que eu sonhei

Naquele dia, como em tantos outros, enforquei todas as aulas do 5º período do curso de Jornalismo. Afinal, aqueles sermões não serviriam mesmo pra nada, assim eu cria. Esparramado na beira da piscina do condomínio, empreendia um esforço hercúleo, usando o poder invisível e interno de meus neurônios e sinapses, a fim de reconstruir o enredo do sonho que havia tido na noite anterior. Montando e remontando, eu ia, as pecinhas da narrativa à medida que pululavam no lago raso da memória precária.

Faz tempo. Acordei meio que chorando seco.

Durante aquela madrugada onírica, ela fazia indagações estranhas: Por que você só tem um brinco? Por que tá balançando a barriga?

Suas ideias eram criativas, mas compreensíveis. Queria dançar músicas do Casaca na hora de dormir. Concebia histórias com interações tão improváveis como a do Lobo Mau com o Luís Fabiano, que jogava na seleção brasileira. 

Pronunciava com a língua presa o fonema do S. A impressão era a de que ela selecionava, muito deliberadamente, palavras com esse fonema, só para pronunciar com a língua presa, de um jeito pra lá de engraçado, que dava vontade de imitar. 

Ela tinha um casal de amigos fictícios que passaram a ser meus amigos também. E como eram legais os dois danadinhos... Ao telefone, ela costumava conversar com outras pessoas também fictícias, a quem ela respondia, repetida e reiteradamente: não acredito! até parece!. Afinal, tais pessoas fictícias lhe diziam coisas ora surpreendentes, ora absurdas.

Sabia a medida certa das coisas: Gosto de pimenta, mas só um pouquinho, muito não. Antes de aprender a falar, solfejava a música de abertura da novela com perfeita afinação. Fui o primeiro a descobrir esse dom.

Eu tinha uma mania incontrolável de reparar em tudo nela.

Quando repreendida, ela ficava cruel: torcia as sobrancelhas, apontava-me o dedo na cara e ameaçava: Não faz isso comigo mais não. E era ainda mais cruel quando me desafiava, com ira e com ironia, olhando no fundo dos meus olhos apaixonados: Que tapinha foi esse que não doeu? 

Se eu morasse longe, ela me estranhava, não sei se por rancor ou por falha na cognição, e eu quase me arrependia. Por alguma razão, ela sempre aprovava minhas namoradas, e isso me satisfazia.

Naquele sonho, ela brincava de passar o nariz no meu, e eu já lamentava pela saudade que sentiria daquilo quando eu fosse embora.

Acho que por isso eu acordei chorando seco.

Às vezes, ela me surpreendia falando as minhas gírias e quando gostava das brincadeiras que eu inventava. Eu ficava extasiado quando ela me adorava. Quando indiferente, eu compreendia.

Ela se escondia de quem entrava em casa, só de sacanagem. Era independente, que chegava a irritar. Eu que vou dirigir. Eu que vou ligar para ela. Ah, já ia me esquecendo: ela tinha o meu mesmíssimo sangue — algo, porém, inadmissível, pois era quase loira, de cabelos artisticamente cacheados.

Acho que por isso eu descobri que era só um sonho.

Hoje, não tenho mais piscina e saio pra trabalhar todos os dias. Vez ou outra, eu me pego concluindo, em silêncio: Meu Deus! Ela é exatamente do jeito que eu sonhei!