quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Bliguinho


Na madrugada, melancolia e solidão. Os músculos das costas sofriam: tinha de me curvar para arrastar a mala de rodinhas com a alça quebrada. Não seria problema se não tivesse de carregar, ainda, uma bolsa, uma mochila, uma sacola imensa. E a pesada saudade que insistia em vir junto. 

A chuva fina incomodava. Instantes antes, havia chorado pela última vez ao deixar o apartamento vazio de gente. Seu caráter de lar desconfigurado por causa de um mundo de mobílias amontoadas, tanto dos predecessores quanto dos novos moradores.

Despedi-me da suíte que fora só minha por meio ano e dos demais cômodos da casa. Se tivessem o dom da fala, as paredes relatariam às gerações vindouras, com entusiasmo, as farras ali vividas, desde o tempo em que passou a ser divertido tomar um fardo inteiro de long neck assistindo futebol na TV.

Diálogos com amigos, videogame, paqueras e casinhos. O ímpeto de nostalgia havia feito telefonar para a namorada de cinco anos atrás. Um contato inédito, diferente das duas ligações anuais, nos respectivos aniversários. Certamente ela não estaria na cidade.

Estava, mas não fez questão de me ver. Com os olhos de cimento rasos d’água, as paredes me disseram o último adeus.

Abençoado pelo sentinela da rua, "vai com Deus, irmãozinho!", caminhava lento, dolorido, a caminho do ônibus que me levaria para longe dali. O pensamento perdido em lembranças, planos, lamentações, devaneios.

Em dado momento, minhas vistas imperfeitas detectaram um corpo pequeno que se aproximava, e que fez lembrar um sujeito pitoresco, conhecido como Bliguinho. Mas aquele que vinha parecia ser ainda menor. “Quer ajuda com as malas?” — abordou-me. Percebi que era mesmo Bliguinho.

Apesar do rosto infantil e do porte minúsculo, não é mais criança, porque tem barba na cara. Não é adulto, por causa do sorriso puro. Não é mendigo, os dentes saudáveis. Não é lúcido, vaga pela cidade. Vez por outra, em ocasiões inoportunas, presta louvores a este ou àquele time de futebol. Não é bobo, tentou beijar minha garota uma vez. Esse é Bliguinho, que despencou às três da manhã na avenida principal para me ajudar com as malas.

Ao contrário do que ele pensara, eu não estava sozinho. Afundado em memórias, no momento derradeiro na cidade universitária, acompanhava-me o motorista espertalhão que me trouxe pela primeira vez a Viçosa. Ele falava um monte de putaria e eu era um adolescente que me achava muito doido porque iria morar fora aos 15 anos de idade. No som do carro tocava uma música boa, parecendo country, que minha ignorância internacional descobriu, anos depois, tratar-se de Dire Straits.

Voltou à tona aquele porteiro do prédio que conseguia gostar de mim embora eu fosse o adolescente mais baderneiro do condomínio. A turma do colégio, os folclóricos malucos da cidade. Os caras da república, os amigos da faculdade. E as tantas pelas quais me apaixonei.

A partir daquele momento tudo seria passado. E a última pessoa que encontrei na cidade enquanto ali morava foi o pequeno Bliguinho, que certamente não faz ideia de quem eu seja. Misto de criança com adulto, alegria, insanidade. Assim como a vida em Viçosa que se findava.

“Quer que te ajude com a mala?”. “Precisa não, Bliguinho, já tô chegando”. Deu meia volta e sumiu no mundo.