quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O gueto

Vez por outra, faço minhas incursões de retorno ao gueto. Ou melhor, tento fazer isso.

No gueto há muita gente, pouquíssimos com mais do que vinte e três anos de idade. Ali impera a euforia e a liberdade. A noite parece não ter hora para acabar e a pessoa pode ser ela mesma, no gueto. Pode ser quem quiser. E dinheiro nem é importante.

Ali impera o frescor de personalidade. Os assuntos são triviais, as paixões efêmeras. O gueto me faz recordar, com nostalgia, de quando eu pouco me importava com o futuro e com os problemas.

Eu fico só observando tudo. E imaginando onde é que eu me posicionaria ali naquele gueto, caso a ele fosse compatível. Saudosista, brinco de identificar, naqueles rostos eloquentes, minha antiga cambada. Juro que a gente ganhava dessa galera, de hoje em dia.

Eu poderia ser aquele doidinho ali, de barba, cara de avoado. Mas como sou compenetrado e trabalhador, fico só de longe observando tudo.

Vejo a dupla de meninas, que é uma qualquer dupla de meninas até atravessarem a avenida. À medida que se aproximam do gueto, elas se aprochegam entre si. Já no núcleo do gueto, tascam um beijo na boca, meio sem propósito e meio sem nexo.

Em outros tempos, a gente, marmanjos, parava espantado para assistir a um beijo de mulher com mulher. Hoje, a naturalidade arrefece. É como a nota de cem que não impressiona o milionário. Ou como a morte que não choca o combatente de guerra.

Sozinho, goleando a terceira cerveja, fico meio que lamentando por causa dessa inevitável maturidade. Pareço inteligente quando falo com as meninas. A molecagem estampada na minha cara.

O que eu queria mesmo era poder voltar no tempo. "Se não posso voltar no tempo, também não posso voltar ao gueto", determino.

Convicto, vou ao banheiro urinar a quarta e derradeira garrafa. Para depois, aliviado então, pegar o portal de regresso à rotina de IPTU atrasado, promoção no trabalho, multa de trânsito e vontade de casar.

Já vou-me saindo de fininho, sem me despedir dos jovens desconhecidos. É quando ouço balbuciarem a meu respeito, alguns passos atrás: “Ah lá, o doidinho de barba, cara de avoado. Malucão, mijou de porta aberta...”.

Ham... quando esqueço de fechar a porta para mijar sinto que ainda sou um pouquinho malucão.