sábado, 24 de dezembro de 2011

O dia em que Noel caiu do trenó

O alarde veio lá da Ásia. A chinesinha Chun ficou furiosa porque ganhou um Playstation no lugar da girafinha que tanto queria. Enviou dezenas de cartinhas nos dias que seguiram, reclamando ao bom velhinho. 

Naquele 24 de dezembro, pela primeira vez em tantos anos, Noel se atrasou. É que na hora de trabalhar, o despertador não tocou. O barbudo havia tirado um cochilo após assistir a uma partida de hóquei pela TV. Sabe como é: sofá macio, casa quentinha, TV de plasma... Ele acordou assustado, saiu às pressas e acabou se atrapalhando todo.

E o pequeno Joãozinho nada entendeu quando abriu o embrulho: uma bicicleta rosa, e com rodinhas! “Mas eu pedi uma bola de futebol!”. Bob, que negociara um violão com Santa Claus em troca de tirar boas notas no colégio, pôs-se a chorar quando se deparou com um par de patins sob sua árvore natalina.

As bolas foras não pararam por aí. Papai Noel pagou mico no lar de uma família africana, quando em vez de entrar pela chaminé deu as caras na área de churrasco e foi surpreendido por todos. Isso sem falar que a jornada fora muito mais lenta do que o usual, porque Noel escalou por engano algumas focas para puxar o seu trenó: como todos sabemos, as focas não voam! O velhote ainda seria pego no bafômetro, na Alemanha. Quando passou por lá, não resistiu e desceu alguns chopes. O guardinha acabou perdoando a multa ao ouvir sua justificativa: “Ho, ho, ho, foi mal aí!”

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Depois de uma noite de trapalhadas, o velho regressou à sua fazendinha, no polo Norte do planeta. Então percebeu que largara a porteira aberta. Sua criação de leões-marinhos havia fugido. Um urso polar acabou devorando seu pinguim de estimação. No jardim de inverno, lá estava um boneco de neve, fantasiado de Noel, bombardeado com tomates podres e moedinhas, em sinal de protesto.

No fogão a lenha, o peru havia tostado. Dali a pouco, o senhor de barbas alvas encontrou seus chinelos de tamanho 43 molhados, na porta do chuveiro. “Ops! Quem os calçou na minha ausência? E pra onde foram Mamãe Noel e meu leal elfo Richard?”. Ao se mirar no espelho, constatou que trazia na cabeça uma bota felpuda. O gorro, por sua vez, estava no pé.

O ancião então se angustiou. “Só pode ter sido maldição de algum desaforado!” — esbravejou rouco. Mas quem? Quem teria sido capaz de armar contra o generoso guru natalino? Que coração rude ousaria comprometer a mais valiosa comemoração de todas as crianças da Terra?

Procurou por pistas, vestígios de tal alma ingrata. Os olhos cansados rastrearam então minúsculas pegadas que levavam até a guirlanda. 

“Caraca!” — Noel desvendava, enfim, quem havia lhe lançado tal praga.

Abaixou os óculos para ler melhor.

Num bilhete, estava escrito assim: "Quem é o bonzão agora, otário? Atenciosamente, Coelhinho da Páscoa".

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Global Positioning System

Aprendi que, na capital, 1700 metros de distância quer dizer “logo ali”. Assim sendo, posso dizer que sou vizinho do maior conjunto de hospitais, clínicas, prontos-socorros e afins de todo o Estado: o complexo da Área Hospitalar. De lá, tomo todos os dias um coletivo que me entrega, em trinta minutos, na porta do trampo: a UFMG. Também é na Área dos Hospitais que desembarco após o expediente, e sigo caminhando de volta ao lar.

Há alguns anos, ter um cafofo nos arredores de um núcleo como esse seria para mim elementar, devido às recorrentes bebedeiras que eu praticava. Por vezes, precisei comparecer (ou ser levado) ao hospital para equilibrar meu nível sanguíneo de glicose; outras, porque a ressaca passou a provocar em mim a sinistra Síndrome do Pânico. Teve também a noite em que quase mutilei meus dedos da mão direita com os cacos de um copo de vidro. Em outras oportunidades apanhei, embriagado, sem saber direito o porquê.

Mas a juventude foi ficando para trás e tudo isso já está praticamente superado em definitivo.

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Dos remotos anos de minha vida, conservei a irritante sina de sempre ficar perdido. Nas terras interioranas onde nasci e me graduei, cometi erros vetoriais, ridículos. Hoje, morando na cidade grande, perco o rumo quase todos os dias. É vasto e humilhante meu histórico de equívocos de rota.

Tento desenvolver, então, artimanhas para evitar os desvios. Para ir ao trabalho, por exemplo, vou codificando referências como igrejas, bares e nomes de ruas. Acontece, porém, que já se foram várias tentativas frustradas de completar o traçado sem me confundir entre o emaranhado de logradouros de BH. Por isso, as referências corretas misturam-se às erradas, compondo um louco mosaico de registros que em nada me ajudam.

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Mas ontem haveria de ser minha redenção. Pela primeira vez, chegara à Área dos Hospitais pelo caminho mais curto, sem deslizes. Fui trabalhar aliviado. Bastava então que, a partir das 19 horas, eu regressasse em segurança à minha casa e pioneiramente seria completado, impecável, o trajeto de ida e volta do meu ganha-pão. O que para um sujeito normal não representa nada demais, seria para mim um divisor de águas. E por falar em águas, o céu desabou na Capital das Alterosas durante todo o dia.

Ao término do expediente, deixei então, esperançoso, a avenida Antônio Carlos, em frente ao campus universitário. Do ponto onde embarco até o extremo dessa avenida são 5,5 km. A partir daí, normalmente o busão ingressa no Centro da cidade e percorre cerca de 3 km até a famigerada Área Hospitalar, no bairro Santa Efigênia. E então volta para a Antônio Carlos.
Dado momento, o coletivo empaca num gigantesco engarrafamento. Minha intuição acusa que estou próximo do meu destino. Concluo, logo, que se descer e prosseguir a pé, chegarei mais rapidamente.

E assim faço. Caminho sob a chuva fina, debochando dos passageiros que abarrotam os veículos, cantarolando e contemplando a liberdade. Afinal, não me importo de molhar o cabelo e a roupa, moro “logo ali”, esbanjo fôlego e saúde. Sou independente e essa avenida tumultuada me parece mesmo familiar.

A caminhada solitária me leva a refletir sobre o quanto sou privilegiado: comecei a trabalhar em Belo Horizonte, onde há muito almejara fixar raízes. Minha rotina não é estressante, o calor na metrópole não incomoda, vivo com bons amigos em um bairro agradável... eita! Já andei uns 30 minutos e não sei mais onde estou! Bosta! De novo!

Antes de entrar em desespero, capto vestígios que ajudem a me situar. “Hum... aquele depósito. Hum... aquele cruzamento”. Nenhum resultado. Tento abordar um taxista, mas ele se recusa a abrir o vidro para me ouvir. “Esse malandro na chuva deve tá querendo me roubar!” – teria pensado.

Mais à frente, avisto uma senhorita, andando de sombrinha entre o amontoado de automóveis lentos. Apresso o passo, com a cautela de não parecer um assaltante. “Olá, boa noite, por favor, que rua é essa?”. A resposta não poderia ser mais animadora: “Essa é a Antônio Carlos. A UFMG é logo ali na frente!”. 
O pior sucedeu. Uma hora e meia depois, estou eu de volta ao ponto de origem. Isso mesmo! Por incrível que possa parecer, eu fora capaz de percorrer toda a avenida onde fica meu trampo, circular pelo Centro, e voltar para a mesma avenida, completando o itinerário do busão! Difícil acreditar, mas eu fui capaz. Só me restou pegar novamente o ônibus e fazer tudo de novo. “Onde foi que eu errei dessa vez?” – passava pela minha cabeça...

Já era nove e meia da noite quando finalmente desci no meu destino, a praça Hugo Werneck: uma bela região, cercada por árvores, hospitais, prontos-socorros e clínicas por todos os lados!

Por aqui também há botecos.

Depois de todo esse episódio mereço tomar uma cerveja antes de ir para casa. Preciso relaxar. Aliás, uma só não. Duas, ou quem sabe seis...

Se eu passar mal, me cortar ou apanhar não tem problema. Hospital por aqui é o que não falta.