segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Meu reino

Tenho três leões belíssimos e imensos. Um deles é altivo, imponente e carnívoro, como se fosse o rei da selva; guardião, predador. O segundo é pensativo: vive a pensar e faz cara de pensador. O terceiro, nem sei. Vieram da China e demoraram quase um milhão de anos para chegar ao meu endereço em Belo Horizonte. Quando chegaram, emoldurei-os. Hoje são protagonistas na parede da sala.

Abaixo dos felinos, meu sofá se expande, igualmente belo e gigante. Vez ou outra, mando lavar ou reformar. Troco sua cor, desde que seja para azul. E por falar em azul, tenho um violão vermelhíssimo, com angelicais cordas de aço. Prefiro cordas de nylon, mas quando o vendedor perguntou aço?, respondi sim querendo dizer não.

O banheiro é moderno, mas o chuveiro funciona mal. Provavelmente porque o comprei com a voltagem errada. Respondi sim ao vendedor querendo dizer não. A geladeira está sempre repleta de cervejas. Se eu as bebesse, ela esvaziaria. Como não as bebo, permanece cheia. Na cozinha há inúmeras plantinhas. Algumas comprei na floricultura, outras nasceram por geração espontânea. Toda sexta-feira dou água a elas, mas elas nunca me dão nada. Por isso, cuidar das plantas é um exercício de altruísmo. Elas bebem água e nada acontece. As mais ingratas um dia morrem.

Quando mais jovem, eu era capaz de me curar de qualquer doença tomando o máximo de água que aguentasse. Enrolava-me com uma dezena de cobertores e concebia, dessa forma, um casulo superaquecido no interior do qual eu transpirava caoticamente. Conforme suava e urinava, eu bebia mais água e, assim, continuamente, ia fazendo, até curar-me completamente. Nunca falhou.

Todas as noites, minha última visão, antes de adormecer, é da luz fortíssima da luminária, virada para a parede do canto, e também do livro e da cara de Jesus. Ali me deito, leio e sonho com as coisas mais loucas. O lado direito da cama pertence à minha pequena, que não gosta da luminária acesa. Acato sim querendo negar não. Não sei seu nome. Só sei que tem a letra L. Por sinal, estabeleci, desde sempre, que todos os nomes de mulher deveriam ter a letra L. Sem o L, parece faltar a leveza necessária ao feminino. Parece faltar lirismo. Falta luxúria. Falta linearidade, falta lógica.

A luz lilás da luminária, o livro lúdico, o lindo Jesus. Um dia, uma menina de apenas oito anos de idade pintou um retrato perfeito de Jesus. Isso me mobilizou além da conta porque a artista tivera visões da dimensão celestial e, mediante essa experiência, desenhou a imagem do Filho de Deus, exatamente conforme ela havia visto. Creio que o retrato seja mesmo fidedigno, mas, ainda que não o fosse... poxa, é absolutamente impressionante que uma criança seja capaz de pintar um retrato tão realista.

A luminária que ofusca, o livro, a cara de Jesus. Talvez eu tenha lido dez por cento dos livros que armazeno. Alguns são clássicos da literatura, outros versam sobre Freud, outros sobre Jesus. Queria um livro que misturasse tudo isso. E também um Big Mac, de madrugada sempre tenho fome. E também uma pequena, com a letra L. E um leal leão.

O outro chuveiro é eficaz. Debaixo dele desapareço e canto. A voz anda grave e ressonante, por causa da gripe. Se fosse mais jovem, eu me embolaria em dez cobertores até suar e ficar curado. 

Pra que tantos livros?

Preciso trocar a lâmpada da luminária por uma mais branda. O livro, a cara de Jesus, vestido com vestes brancas. Em qualquer direção, ele me olha, como fazia a Monalisa. E eu me pergunto: o que é que eu tô fazendo aqui? Já nem sei. Pra que tantas roupas? Muitas encolheram, ou fui eu que engordei, nem sei.

Toda noite, os leões, a luz, o livro, Jesus. Ontem o Bruno, do Biquini, não cantou aquela canção segundo a qual a sua casa é seu reino. Sou muito ídolo do Bruno Gouveia. Ou melhor, sou fã desse cantor. Já nem sei.

Eu sei é que toda essa adrenalina não me deixa dormir.