quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Praxedes, o tranquilão

Impossível que já tenha havido alguém tão condescendente tal qual o Praxedes. Omisso daqueles fervorosos, é defensor árduo e tácito da convicção de não defender causa nem coisa nenhuma, muito menos de defender-se a si mesmo. Alguns conhecidos o consideram, inclusive, um tremendo bananão. Mas há também quem o tenha como, simplesmente, uma alma generosa.

Antes que eu me complique, relatarei uma série de fatos que sucederam ao longo de uma segunda-feira comum na vida do Praxedes. Assim serei mais preciso ao descrevê-lo. Diz respeito a uma segunda-feira qualquer que ocorreu depois de 56 anos da vida comum do Praxedes.

Devo explicar, primeiramente, que o Praxedes trabalha como servidor público e cumpre algumas tarefas burocráticas. Passa o dia inteiro protocolando, fazendo planilhas, redigindo relatórios que não serão lidos. O Praxedes não se incomoda.

Seus colegas, durante a maior parte do expediente, jogam conversa fora e tomam cafezinho. Às vezes, fazem essas duas coisas ao mesmo tempo e, por essa razão, Praxedes costuma ficar sobrecarregado com as tarefas rotineiras. Mas ele não se importa de permanecer por mais algumas horas na repartição, após o seu horário regular, até terminar todo o serviço.

Com seu modesto salário, sustenta o lar e também arca com as despesas que ele chama de 'caprichos da esposa'. No caso, a mulher gasta com coisas que Praxedes julga desnecessárias. Ele quase não tem tempo para se aborrecer, por isso ostenta sempre um sorriso bobo e vago.

Mas eu dizia que, em uma segunda-feira comum do mês de março, Praxedes saía da repartição quando percebeu que, enquanto estivera trabalhando, algum motorista descuidado bateu na traseira do seu carro, que estava estacionado. Indiferente, Praxedes acenou para o porteiro na guarita, despediu-se como de costume, engatou a primeira marcha, e partiu. Nada é capaz de afetar esse bom homem.

Alguns metros adiante, uma manifestação de populares interditava o trânsito, já caótico, no horário de pico. A rua estava muito tumultuada e barulhenta. Nenhum veículo podia se mover. Praxedes observa a situação pacientemente, através do vidro. Enquanto aguarda parado na via, um assaltante oportunista chega de rompante e lhe subtrai o telefone celular. Praxedes suspira, contrariado.

Já anoitecia quando ele conseguiu chegar ao Shopping Center, onde compraria um presente em ocasião do aniversário do seu sogro. Tal velho, implicante e explorador, refere-se ao Praxedes, invariavelmente, lançando mão da carinhosa alcunha de bundão. Mas isso não chega a causar algum desconforto no Praxedes.

Depois de meia hora na loja de departamentos, o genro escolhe o presente: uma gravata preta com bolinhas brancas. Mas quando vai pagar, o cartão de crédito não passa, pois está com o limite estourado. “Que azar...”, coçou-se, o Praxedes.

Ele então precisa descer quatro lances de escadas rolantes, voltar ao estacionamento e recorrer, no interior de seu carro, ao montinho de dinheiro em espécie que deixara reservado para alguma emergência. Vinte minutos depois, Praxedes volta à loja, mas o produto antes selecionado já havia sido vendido. “Eita... mas que dia azarento, não é mesmo?”, ele pensa.

O infortúnio faz demandar novo processo de pesquisa. Mais uma volta no relógio é necessária até que Praxedes cumpra sua missão naquele estabelecimento. Ele deixa o local levando uma gravata preta com quadradinhos brancos.
Já são quase dez da noite quando Praxedes se torna apto a regressar a seu aconchegante lar. Exausto, ele opta por descer de elevador, a caminho, mais uma vez, do estacionamento. Praxedes almeja deitar em seu sofá, ler o jornal do dia, com as notícias já envelhecidas, talvez descalçar os sapatos.

Nesse momento, ainda vivencia mais uma desagradável surpresa. Devido a uma pane elétrica, o elevador enguiça no meio do caminho. “Mas será possível?” – ele matuta, apertando uma mão na outra.

Sem seu celular ou outro instrumento capaz de distraí-lo, Praxedes permanece quieto, ali trancado, atento somente aos próprios pensamentos. Ele pensa nas suas planilhas e relatórios, no vestido novo da sua esposa e na mensalidade do colégio da filha. Pensa também na ração do cachorro e na missa que ouvira, domingo, na igreja. O elevador fica enguiçado por mais alguns minutos, até que a normalidade é restabelecida. “Agora sim, lá vou eu!”.

Praxedes caminha alguns metros, entra em seu carro. Dirige até a cancela. Insere o cartão de estacionamento no dispositivo. A cancela levanta e esse mesmo dispositivo emite uma voz simpática, feminina. Ele presta atenção. É uma gravação, automática:

 – Agradecemos pela sua visita! Volte sempre!

Praxedes abaixa o vidro. Olha fixamente para aquela coisa com voz robótica. Sua pele se ruboriza e ele extravasa: _VAI PRO INFEEERNO DISGRAAAÇA!!!

Arranca o carro de forma bruta, arranca cantando os pneus. Quem passa ali por perto até se espanta com tamanha selvageria.

Mas Praxedes não liga não. Volta pra casa tranquilão como sempre... Amanhã é terça-feira, será um novo dia!